file5001236720184O Disque 100, serviço telefônico que recebe, encaminha e monitora denúncias de violação de direitos humanos, divulgou que, em 2014, houve 19 mil denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Destas, quase 20% dos abusados são crianças de 0 a 7 anos. E o mais grave é que, na maior parte dos casos, a violência acontece dentro de casa: as crianças são vítimas dos próprios familiares.

Em 2013, a Pastoral da Criança em parceria com a Unicef, através do Movimento Paz e Proteção, disponibilizou um milhão de folhetos com os 10 mandamentos para a paz na família. No material, está o incentivo para acessar o Disque 100 e o aplicativo Proteja Brasil, levando aos líderes e famílias instrumentos para proteger as crianças da violência e discriminação.

Na tentativa de colaborar ainda mais com os líderes que podem se deparar com estas situações, a edição nº 2 da Revista Pastoral da Criança traz uma entrevista com Graça Gadelha*, socióloga especialista em políticas públicas na área da infância e da juventude, e consultora responsável pela revisão do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Aqui você encontra a entrevista completa.

GracaGadelha

Graça Gadelha

Revista Pastoral da Criança: Qual a diferença entre violência, abuso e exploração sexual?

Graça Gadelha: A violência é qualquer ato em que se priva a criança ou o adolescente dos seus direitos, das suas liberdades. A violência pode ser física, psicológica, institucional, entre outras. O abuso e a exploração sexual são modalidades de violência, que estão incluídas como expressões de violência sexual. O abuso sexual é a utilização do corpo de uma criança ou do adolescente para a prática de qualquer ato de natureza sexual, com o único objetivo de satisfazer o desejo do autor deste tipo de violência. Esta forma de abuso é a mais recorrente. É aquela em que a gente vai trabalhar com situações em que as vítimas têm uma proximidade muito forte com o autor – pode haver uma relação de parentesco –, portanto está no âmbito de uma violência considerada intrafamiliar. Quando citamos a exploração sexual, estamos falando da utilização sexual de uma criança, ou do corpo da criança e do adolescente, para obter recursos financeiros ou qualquer tipo de troca, como se fosse uma mercadoria. A exploração sexual pode utilizar essa criança para pornografia, para fins de tráfico, entre outros. Estes conceitos estão presentes no Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Criança e Adolescente, vigente desde o ano 2000, e que foi revisado em 2013.

As denúncias do Disque 100, em 2014, identificam mais de 5 mil casos de violência sexual contra crianças de 0 a 7 anos. Como é possível identificar o abuso sexual de crianças tão pequenas, já que muitas vezes elas têm medo de contar ou sequer identificam que estão sendo abusadas?

A criança é sujeito de direito que requer e demanda de todos um olhar cuidadoso e diferenciado, tanto por parte do poder público, como da sociedade e da família. Estas três instâncias são responsáveis e corresponsáveis pela proteção integral desta criança e adolescente, a partir dos espaços onde ela se encontra.
Existem muitas formas de identificar este tipo de situação, como fatores comportamentais que conduzem a uma percepção. A gente pode perceber através das palavras destas crianças, das brincadeiras, dos gestos, de um desenho que ela faz na escola, de um comportamento sexual inadequado para a idade dela. Uma mudança de comportamento, uma súbita alteração de humor, medo, fobias, sono inquieto, isolamento social, podem constituir elementos para identificação. Um comportamento agressivo; o problema de fazer xixi toda hora; a perda de apetite ou excesso de alimentação são indicadores. Principalmente nas crianças mais novas que estão dentro deste contexto de muita vulnerabilidade. Eu sempre digo que os espaços da escola, da casa, o atendimento no posto de saúde, ou até mesmo pelo próprio agente de saúde, podem revelar situações que não são de visibilidade, mas que, às vezes, uma simples visita pode facilitar a identificação [de abuso] que vai retirar esta criança de problemas mais sérios.
Se nós temos estes indicadores em relação às crianças mais novas, em relação às mais velhas, pais, professores, agentes de saúde, profissionais da área de saúde podem ficar atentos no que diz respeito a dependência de álcool, de drogas. A questão do comportamento sexual precoce, automutilação, uma tendência até ao suicídio, são sinais que devem gerar uma preocupação muito forte em nós.
Infelizmente, o Brasil é um país que tem registrado casos alarmantes de situações gravíssimas em relação a abusos praticados, até por familiares, contra crianças muito novas. Às vezes são bebês - crianças de um, dois anos. Ainda que nesta circunstância, esta criança não está só, ela tem uma comunidade, uma vizinhança. É preciso que estejamos todos atentos, de olhar e cabeça firmes para cessar este círculo de violência que ocorre no cotidiano destas crianças, nas suas comunidades e nas suas próprias casas.

Ainda existe um medo de denunciar e quebrar a confiança com a família. Ao mesmo tempo, sabemos que o bem estar da crianças é dever de toda a comunidade. Como as pessoas podem agir quando desconfiam da violência sexual?

Na verdade é todo um contexto. A cultura brasileira calcada no machismo exacerbado e de uma percepção de poder, de submissão, de autoridade, conduz a muitas situações, em que as maiores vítimas - sobretudo neste campo da violência sexual – são crianças e adolescentes. A legislação brasileira traz para nós este compromisso de assegurar respeito e dignidade a esta criança. Hoje nós temos uma mídia mais comprometida, e uma capilaridade muito grande de serviços de equipamentos públicos, seja na área de saúde, seja na área da assistência social. Nas próprias escolas, há um esforço de capacitar os professores, os profissionais que atuam na área da educação para que eles fiquem atentos.
O trabalho precisa ser contínuo, e pode ser exercido tanto pela ações do governo, como pela sociedade civil, através de organizações, como a própria Pastoral da Criança, que tem uma grande capilaridade no Brasil todo e que faz um trabalho humanizado. É preciso incluir o compromisso de capacitar e qualificar seus voluntários para essa identificação e encaminhamento dos casos aos órgãos que precisam tomar conhecimento disso, para que as providências sejam adotadas. Ressalto também o papel do Conselho Tutelar, que hoje está presente em praticamente todos os municípios brasileiros. Há também uma Rede de Proteção, como o CRAS, CREAS, as Unidades de Saúde e outras unidades de assistência, além dos programas que são desenvolvidos por diferentes organizações.
Não tem desculpa para dizer que deixou de denunciar, principalmente utilizando o Disque 100, um serviço gratuito que garante inclusive o anonimato. E ao fazer esta denúncia, você tem a possibilidade de interromper este ciclo da violência. É dever de todos nós, como cidadãos, e sobretudo, obrigação do poder público, fazer com que esta situação seja imediatamente interrompida.

E o líder da Pastoral da Criança ao visitar a família, como pode identificar e denunciar a violência sem que isso prejudique o seu trabalho?

Os líderes têm o privilégio de adentrar estas casas. A partir desse trabalho de confiança e desse olhar mais atento e, ao mesmo tempo, humanitário em relação às situações, é em que eles podem atuar. Principalmente em situações de contextos de alta vulnerabilidade social, nos quais eles estão diretamente vinculados com famílias, onde há situações de desassistência, de desprovimento de políticas. A presença dessas pessoas pode fazer uma diferença muito grande na vida dessas crianças e desses adolescentes.
O líder não vai dar conta sozinho da situação que, muitas vezes, é recorrente. Então, ele precisa do apoio e suporte da rede de proteção e da comunidade, para poder discutir, fazer estudo do caso, trabalhar com essas famílias através de informações, de divulgação, de ferramentas que podem interromper essa situação. O Disque 100 é uma ferramenta importantíssima, porque garante o sigilo e a privacidade. Ele precisa da rede de proteção, que pode assegurar todo conjunto do atendimento que uma criança ou adolescente que sofre esse tipo de situação: o atendimento de saúde, psicossocial, jurídico, de acolhimento, do “adoecimento” dessa família. Estas são situações que encontramos muito nesse nosso Brasil tão grande, tão diverso, tão desigual e, às vezes, tão cruel com nossas crianças e adolescentes.

Qual a punição de alguém que comete um abuso sexual?

Desde 2008, com a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito, (CPI da Pedofilia), houve alterações nas leis que tipificam e punem quem abusa sexualmente de crianças e adolescentes. A Lei 11.829/2008 insere como crime qualquer ato de produção, registro, distribuição, e até mesmo armazenamento, de material pornográfico ou de sexo que envolva crianças e adolescentes.

Com a CPI, o Código Penal também sofreu alterações, em especial entre os artigos 213 a 234, que retratam possíveis abusos que pessoas com menos de 18 anos possam sofrer. O artigo 217A, Estupro de Vulnerável, é definido como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, tendo a aplicação de pena a partir de 8 anos de reclusão e podendo ser aumentada em até 30 anos, a depender da gravidade do abuso - como violência cometida contra uma criança deficiente.

Portanto, qualquer pessoa que cometa violência sexual contra crianças tem uma punição a ser aplicada. O grande problema, conforme coloca a entrevistada, é que muitas dessas pessoas que são julgadas alegam que são pedófilos – ou seja, possuem transtorno psicológico – para ter sua pena diminuída. Portanto, devemos ter claro: quem abusa, é sempre criminoso, mas nem todo criminoso é pedófilo.

Todos as pessoas que abusam de crianças são pedófilas?

É muito importante fazer uma distinção entre pedofilia e abuso. A pedofilia é uma preferência sexual por crianças, são pessoas que têm um comportamento, um transtorno de comportamento sexual, cuja característica é o desejo sexual focado em “crianças pré-púberes”, que são crianças de até 12 anos. Essa pessoa precisa fazer um tratamento. Se colocar essas duas classificações [abuso e pedofilia] no mesmo patamar, como se fosse sinônimo, você está criando um problema muito grave, porque nem todo abusador sexual é pedófilo. Tem abusador sexual que não tem preferências só por crianças. Se eu falo de pedófilos ou pedofilia, estou falando de uma pessoa que tem uma doença, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Quando você coloca abuso e pedofilia no mesmo patamar, sem fazer essa distinção, você corre o risco de, do ponto de vista do Código Penal Brasileiro, minimizar a pena de pessoas que não são pedófilas, porque elas passam a ser tratadas como um doente: a pena dele [o pedófilo] deve ser diferenciada; ele deve cumprir essa pena não em um estabelecimento prisional, mas num estabelecimento de saúde, hospital psiquiátrico.
E, o que se observa no Brasil, é que a maioria dos abusadores sexuais não têm essa característica: eles não são pedófilos. Aqui no Brasil, a característica dos abusadores sexuais vem de uma matriz cultural muito forte: dessa cultura machista, da apropriação de corpo, desrespeitando totalmente os direitos humanos dessa criança e do adolescente.

Os números de denúncias têm aumentado nos últimos anos. Isso significa que estão havendo mais abusos?

O que observamos é que todas as vezes que o Disque 100 é bastante divulgado, seja em períodos de grandes festas, como o carnaval, ou grandes mobilizações, percebemos que o número de denúncias alcança um patamar bastante expressivo. Então, não dá pra fazer esta relação, se isso significa que está havendo mais abuso. O fato é que há a necessidade de, cada vez mais, fazermos um esforço, tanto do ponto de vista da mídia, como dos órgãos em geral, de divulgar amplamente essas informações.
No Brasil, quando se trata de violência sexual, temos números de fato muito expressivos, mas há um número que vai para além destes da violência sexual, que são os casos de negligência, de maus tratos. Somos uma sociedade muito violenta, que não atua de forma a garantir o direito das nossas crianças e adolescentes. Então, quanto mais campanhas e divulgação para interromper essas situações e quanto mais criarmos espaços – como nas escolas, na família, nas igrejas – para que estas situações possam ser trazidas, discutidas, compartilhadas e, mais que isso, que possamos orientar como devem ser interrompidas, melhor.

*Graça Gadelha é pesquisadora social, com diversos trabalhos publicados na área de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Atua nessa área há mais de 25 anos, incluindo o exercício de funções de coordenação, gerenciamento e direção de programas no âmbito da cooperação internacional, como também no setor público e em organizações do terceiro setor. Consultora da ANDI Comunicação e Direitos, Prêmio Tim Lopes e em capacitação para jornalistas no tema Violência Sexual. Consultora Sênior do Instituto Aliança. Integra o Conselho Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap).

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