Seção 5
Recursos
Histórias
Escutai o meu ensino, povo meu;
inclinai os vossos ouvidos às palavras da minha boca.
Abrirei a minha boca numa parábola;
proporei enigmas da antiguidade,
coisas que temos ouvido e sabido,
e que nossos pais nos têm contado.
Não os encobriremos aos seus filhos,
cantaremos às gerações vindouras
os louvores do Senhor, assim como a sua força
e as maravilhas que tem feito.
Estes versos da Bíblia hebraica (Salmo 78:1-4) trazem à luz uma das dimensões do que significa ser humano: a fim de chegar ao que há de mais profundo em cada um de nós, não há nada como uma história para cruzar o umbral e penetrar em nosso interior. Deus, ou o Supremo, ou a Realidade, ou a Sabedoria, ou o Transcendente, ou o Incognoscível, ou o Incomparável, tudo isso é mediado pelas histórias. As histórias ecoam tradições do passado, o que nós escutamos e o que nossos antepassados
nos disseram. As histórias são transmitidas de uma geração a outra. Sobrevivem unicamente graças à memória, e nisso consiste sua autoridade. Por meio delas, as novas gerações adquirem conhecimentos. Não pretendem ser fatos irrefutáveis; não têm porque sê-lo, já que os ouvintes as aceitam como um tipo diferente de verdade do que a que aparece nos preceitos e nas teorias. De fato, em uma história de ficção pode haver uma grande dose de verdade, e muita falsidade em uma história que utiliza fatos concretos. A narração de histórias, diz Hannah Arendt, revela o significado sem cometer o erro de defini-lo. ¹ Nisso reside a força da história. O significado é sugerido e não imposto sobre nós como uma camisa de força. É percebido, mas não conceitualizado. Está lá, mas não pode ser visto.
As histórias conectam o céu à terra, a realidade concreta a essa outra realidade que é muito mais difícil de articular ou compreender. As histórias podem abrir as portas para o passado; fazem presente reverberar em uma eternidade sem limites e contêm uma referência do futuro. O poeta o romancista nigeriano Ben Okri diz: “Saiba que as histórias podem conquistar o medo. Elas podem e tornar o coração maior.”
Todos adoramos ouvir histórias. A criança na cama antes de dormir, as pessoas reunidas em torno de um contador de histórias ao pé da lareira, saboreando as palavras, assentindo com a cabeça, sorrindo, gargalhando e cutucando satisfeitos uns aos outros. Quando se escuta a narração de uma história, surge um sentimento de comunhão e uma sensação de pertencer a uma comunidade. Embora provavelmente seja verdade que a tecnologia, os meios interativos e os jogos eletrônicos disponíveis em muitas culturas oferecem histórias mais avançadas, situações mais coloridas, detalhes mais explícitos, a fascinação diante das narrativas faz parte do ser humano. Na tradição judaica, diz-se que o ser humano não é o único que aprecia a narração de histórias. Quando se pergunta: “Por que Deus criou o homem?”, a resposta é: “Porque Deus adora escutar uma boa história.”
¹ Hannah Arendt (1906 -1975), pensadora política e filósofa alemã: Origins of Storytelling, Bartlett’s Book of Quotations
A história permite que a criança entre em outro mundo, que lhe é ao mesmo tempo familiar e desconhecido. Uma história começa com palavras mágicas: “Era uma vez”. Em árabe, as histórias começam dizendo: Ken ye me ken, que pode ser traduzido como “foi e não foi”, e todo mundo sabe que chegou o momento de escutar uma história. Quando algumas pessoas no Irã contam uma história, começam dizendo: Yeki bud, yeki nabud, “houve uma vez e não houve”, e todos se sentam para escutar e se preparam para entrar em um universo onde tudo isso é possível. As histórias não são contos de fadas, mas expressões em todos os níveis do que realmente significa ser humano. Ninguém sonharia em extrair dogmas ou proposições teóricas de uma história. As histórias acontecem em uma dimensão onde há alguém e não há ninguém, ou onde algo acontece e ao mesmo tempo não acontece.
A narração de histórias ocorre no mundo real, mas a história em si não é o mundo real. É um tipo diferente de mundo, que tem muito a ver com o crepúsculo. Dois tipos de luzes se encontram, a luz do dia e a luz da noite, e somos incapazes de dizer onde começa uma e termina a outra. A pessoa se encontra no umbral, quando não está dentro nem fora. Somente no umbral podemos compreender que dois tipos de verdades contraditórias não se excluem, mas podem ser mantidos juntos em uma tensão criativa para nos conduzir, cada vez mais profundamente, ao nosso próprio ser.
Eco e Narciso
Eco era uma ninfa que morava em um bosque junto a outras ninfas amigas e gostava de caçar, por isso era uma das favoritas da deusa Artemísia.
Mas Eco tinha um grave defeito: Era muito conversadora. Em qualquer conversa ou discussão, sempre queria ter a última palavra.
Certo dia, a deusa Hera saiu em busca de seu marido Zeus, que gostava de se divertir entre as ninfas. Quando Hera chegou ao bosque das ninfas, Eco a entreteve com sua conversa enquanto as ninfas fugiam.
Quando descobriu sua trapaça, Hera a condenou dizendo: – Por ter me enganado, a partir deste momento você perderá o uso da língua. E, já que gosta tanto de ter a última palavra sozinha, poderá responder com a última palavra que escutar. Jamais poderá voltar a falar primeiro.
Eco, com sua maldição, dedicou-se à caça, percorrendo montes e bosques. Um dia viu um formoso jovem chamado Narciso e se apaixonou perdidamente por ele. Desejou poder conversar com ele, mas tinha a palavra vedada. Então começou a persegui-lo esperando que Narciso lhe falasse em algum momento.
Em certo momento, Narciso estava sozinho no bosque, escutou um ranger de ramos às suas costas e gritou: – Tem alguém aqui?
Eco respondeu: – Aqui.
Como não viu ninguém, Narciso gritou de novo: – Vem!
E Eco respondeu: – Vem!
Como ninguém se aproximava, Narciso disse: – Por que foges de mim? Unamo-nos!
A ninfa, louca de amor, lançou-se em seus braços dizendo: – Unamo-nos!
Narciso deu um salto para trás dizendo: – Afaste-se de mim! Prefiro morrer a te pertencer!
Eco respondeu: – Te pertencer.
Diante da forte rejeição de Narciso, Eco sentiu uma vergonha tão grande que, chorando, se enclausurou nas cavernas e nos picos das montanhas. A tristeza consumiu seu corpo até pulverizá-la. Só ficou sua voz para responder com a última palavra a qualquer pessoa que lhe falasse.
Narciso rejeitou Eco e sua crueldade se manifestou também entre outras ninfas que se apaixonaram por ele. Uma dessas ninfas, que havia tentado ganhar seu amor sem conseguir, suplicou à deusa Hera que Narciso sentisse algum dia o que era amar sem ser correspondido, e a deusa respondeu favoravelmente à sua súplica.
Escondida no bosque, havia uma fonte de água cristalina. Tão clara e mansa era a fonte que parecia um espelho. Um dia, Narciso se aproximou para beber e, ao ver sua própria imagem refletida, pensou que era um espírito da água que habitava esse lugar. Ficou extasiado ao ver esse rosto perfeito, os cabelos louros ondulados, o azul profundo de seus olhos, e se apaixonou perdidamente por essa imagem.
Desejou se afastar, mas a atração que exercia sobre ele era tão forte que não conseguiu se separar. Muito pelo contrário, desejou beijá-lo e abraçá-lo com todas as suas forças. Tinha se apaixonado por si mesmo.
Desesperado, Narciso começou a falar: – Por que foges de mim, formoso espírito das águas? Se sorrio, você sorri. Se estico meus braços em sua direção, você também estica. Não compreendo.
Todas as ninfas me amam, mas não queres aproximar-te. – Enquanto falava, uma lágrima caiu de seus olhos. A imagem refletida ficou nublada e Narciso suplicou: – Rogo que fiques junto de mim. Já que me é impossível tocar-te, deixa que te contemple.
Narciso continuou apaixonado por si mesmo. Não comia nem bebia para não se separar da imagem, até que terminou se consumindo e morreu.
As ninfas quiseram dar-lhe sepultura, mas não encontraram o corpo em nenhuma parte. No lugar, apareceu uma flor formosa de folhas brancas que, para conservar sua lembrança, leva o nome de narciso.
(Pedro Calderón de la Barca, 1961)
Uma lenda hindu
Em uma antiga cidade da Índia viviam seis cegos. Eles sempre ouviam falar do majestoso elefante do Rajá (príncipe). Até que um dia resolveram examinar diretamente o grande animal.
Chegando perto do elefante, o primeiro cego conseguiu colocar a mão na barriga do elefante e disse:
– O elefante é como um muro.
Porém, o segundo cego segurou uma das presas e, ouvindo o amigo, disse:
– Não, o elefante é pontiagudo e duro como uma lança.
O terceiro cego, agarrando com força a tromba, discordou:
– O elefante é como uma serpente.
O quarto cego, pegando a enorme perna do elefante, disse:
– Vocês estão todos enganados, parece que estão loucos! O elefante é como um tronco de árvore!
O quinto cego, ouvindo a confusão dos amigos, decidiu saltar por cima do animal. Segurou, então, uma das grandes orelhas do elefante e disse:
– Todos vocês são mesmo uns idiotas, não perceberam que o elefante é um grande leque de abano.
Por fim, o sexto cego segurou a cauda cuidadosamente e disse:
– Calem-se todos! O elefante é uma enorme corda resistente.
Os cegos, pegando uma parte do corpo do elefante, conheceram apenas uma parte do animal. Entretanto, cada cego era muito orgulhoso. Pensava que sua parte correspondia ao todo do corpo do animal, criando toda a confusão.
(adaptação, Kuo, Louise e Kuo, Yuan-Hsi (1976), “Chinese Folk Tales”. Celestial Arts. pp. 83-85.)
A mandioca
Nenhum homem a havia tocado, mas uma criança cresceu no ventre da filha do chefe.
Chamaram-no Mani. Poucos dias depois de nascer, já corria e conversava. Dos mais remotos cantos da selva, vinham conhecer o prodigioso Mani.
Não sofreu de nenhuma doença, mas ao completar um ano, disse: “Vou morrer”; e morreu.
Passou um tempo e uma planta jamais vista brotou na sepultura do Mani, que a mãe regava todas as manhãs. A planta cresceu, floresceu, deu frutos. Os pássaros que a bicavam andavam ao léu pelo ar, batendo as asas em espirais loucas e cantando como nunca.
Um dia a terra se abriu onde Mani jazia.
O chefe afundou a mão e arrancou uma raiz grande e carnosa. Ralou-a com uma pedra, fez uma pasta, a espremeu e ao calor do fogo assou pão para todos.
Deram o nome de mani oca a essa raiz, “casa do Mani”, e mandioca é o nome que tem esse alimento na bacia amazônica e em outros lugares.
(Benjamin Péret, extraído de Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique, Paris, Albin Michel, 1960)
A raposa e a cegonha
Um dia a raposa foi visitar a cegonha e convidou-a para jantar.
Na noite seguinte, a cegonha chegou à casa da raposa.
– Que bem que cheira! – disse a cegonha ao ver a raposa fazendo o jantar.
– Vem, vamos comer – disse a raposa, olhando o comprido bico da cegonha e rindo-se para si mesma.
A raposa, que tinha feito uma saborosa sopa, serviu-a em dois pratos rasos e começou a lamber a sua. Mas a cegonha não conseguiu comer: o bico era muito comprido e estreito e o prato muito plano. Era, porém, muito educada para se queixar e voltou para casa cheinha de fome.
Claro que a raposa fez piada da situação!
A cegonha pensou, voltou a pensar e achou que a raposa merecia uma lição. E convidou-a também para jantar. Fez uma apetitosa e bem cheirosa sopa, tal como a raposa tinha feito. Porém, desta vez serviu-a em jarros muito altos e estreitos, totalmente apropriados para enfiar o seu bico.
– Anda, vem comer, amiga Raposa, a sopa está simplesmente deliciosa – falou a cegonha, fazendo o ar mais cândido deste mundo.
E foi a vez de a raposa não conseguir comer nada: os jarros eram muito altos e muito estreitos.
– Muito obrigado, amiga Cegonha, mas não tenho fome nenhuma – respondeu a raposa com um ar muito pesaroso. E voltou para casa de mau humor, porque a cegonha lhe tinha dado o troco.
(Félix María Samaniego, Fabula)
As Três Penas
Era uma vez um rico senhor de terras que tinha três filhos. Os dois mais velhos eram muito habilidosos e inteligentes; o terceiro, porém, não falava muito e era humilde, sendo conhecido como Simplório. Quando estava velho e debilitado, o fazendeiro começou a pensar sobre seu final, não sabendo a qual dos filhos deveria deixar a fazenda. Então ele os chamou e disse:
– Saiam pelo mundo. Aquele que me trouxer o tapete mais belo herdará minha fazenda – e, para que não houvesse disputa entre eles, levou-os para fora do palácio, lançou três penas ao ar e disse: – Sigam na direção em que forem as penas.
Uma voou para o leste, outra para o oeste, mas a terceira subiu e, sem sair do lugar, caiu de novo ao chão. Um dos filhos mais velhos seguiu para o leste e o outro para o oeste, ambos rindo de Simplório, que não teve outra alternativa senão ficar onde a terceira pena havia caído. Ele se sentou no chão, entristecido, mas ao fazer isso percebeu que próximo da pena, no solo, havia um alçapão. Ao levantá-lo, encontrou uma escadaria e desceu por ela. Mais abaixo, chegou a outra porta, bateu e escutou
dentro uma voz que dizia:
– Donzela verdinha, saltando aqui e acolá,salte até a porta para ver quem será.
A porta se abriu e ele se deparou com uma rã grande e gorda, cercada por uma porção de rãs menores.
A rã gorda lhe perguntou o que queria. Ele disse:
– Gostaria de obter o tapete mais belo e fino do mundo.
Então ela chamou uma das rãs pequenas e lhe disse:
– Donzela verdinha,
saltando aqui e acolá,
salte rápido e traga
aquele baú para cá.
A rãzinha trouxe o baú e a rã gorda o abriu, dando a Simplório um tapete tão fino e tão belo que ninguém no mundo poderia ter nada igual. Ele a agradeceu pelo favor e subiu novamente. Os outros irmãos, porém, achavam seu irmão tão ingênuo que não acreditavam que ele pudesse trazer alguma coisa.
– Para que vamos nos incomodar procurando tanto? – eles pensaram, e, pegando alguns panos rústicos feitos pelas esposas de pastores que encontraram pelo caminho, eles os levaram para a casa de seu pai. Ao mesmo tempo, chegou Simplório trazendo o belíssimo tapete. Ao vê-lo, o fazendeiro se surpreendeu e disse:
– Para ser justo, a fazenda pertencerá ao mais novo.
Os outros, porém, não deixavam seu pai em paz, dizendo que era impossível que Simplório, tão tolo em muitas outras coisas, pudesse ser o novo proprietário da fazenda. Finalmente eles convenceram o pai a fazer um novo acordo entre eles. Então o pai disse:
– Aquele que me trouxer o anel mais belo herdará minha fazenda.
Levou-os para fora, jogou as três penas para cima e indicou qual deveriam seguir. As penas dos dois mais velhos seguiram para o leste e o oeste, mas a de Simplório novamente subiu e desceu perto da porta que ele já conhecia. Então ele desceu novamente até a rã gorda e lhe disse que desejava o anel mais belo. Imediatamente, ela ordenou que trouxessem o baú e dele retirou um formoso anel, com joias brilhantes, tão belo que nenhum joalheiro seria capaz de fazer algo parecido.
Enquanto isso, os dois irmãos mais velhos riam-se ao imaginar Simplório em busca de um anel dourado. E nem se preocuparam muito com a tarefa. Pegaram o primeiro anel que encontraram em uma venda do povoado e o levaram ao pai. Porém, quando Simplório apresentou o anel que trazia, seu pai disse novamente:
– A fazenda será de Simplório.
Os dois mais velhos não se cansavam de atormentar o pai para que impusesse uma terceira condição: dar a fazenda a quem trouxesse para casa a mulher mais formosa. Por fim, ele cedeu e novamente lançou ao ar as penas, que voaram como antes.
Então, Simplório, sem ter mais o que fazer, desceu até a rã gorda e lhe disse:
– Agora tenho que levar a mulher mais bela para casa.
– Oh! – respondeu a rã – A mulher mais bela! Não a tenho à mão neste momento, mas de qualquer maneira você a terá.
A rã lhe deu um nabo oco puxado por seis ratos em arreios. Simplório, um tanto confuso, perguntou:
– Mas o que posso fazer com isso?
A rã respondeu:
– Simplesmente coloque uma de minhas rãzinhas dentro do nabo.
Dizendo isso, pegou ao acaso uma das rãs à sua volta e a pôs dentro do nabo. Imediatamente, o nabo se converteu em uma luxuosa carruagem, os ratos em fogosos cavalos e a rã em uma belíssima donzela. Então Simplório a beijou e partiu junto com ela na carruagem rumo à casa de seu pai.
Os irmãos logo chegaram, já que não haviam se esforçado muito para procurar mulheres belas. Traziam consigo as primeiras camponesas que encontraram pelo caminho. Quando viu todas, o fazendeiro disse:
– Depois de minha morte, a fazenda será de meu filho mais novo.
Imediatamente, os dois mais velhos insistiram que fizesse algo mais, dizendo:
– Não podemos concordar tão facilmente que Simplório seja o herdeiro. Queremos que o escolhido seja aquele cuja esposa consiga saltar através de um arco colocado no centro da sala.
Ao fazer essa exigência, eles pensavam: “Nossas mulheres camponesas farão isso com facilidade, enquanto a refinada donzela cairá e se machucará.”
O pai aceitou essa última proposta. Então as duas camponesas saltaram através do arco, mas eram tão corpulentas que caíram e machucaram seus braços e pernas. Quando chegou a vez da bela donzela trazida por Simplório, ela saltou tão habilmente quanto uma rã, sem sofrer qualquer acidente.
Nesse ponto, os filhos mais velhos não se opuseram mais. Simplório recebeu a fazenda e a administrou com total sabedoria pelo resto de sua vida. Os irmãos o aceitaram como patrão e viveram em paz desse dia em diante.
Moral da história:
Nunca se deve julgar pelas aparências. Dentro de um espírito aparentemente simples pode haver uma imensa grandeza.
(Irmãos Grimm)
Um bonito conto de Paulo Coelho
Um homem, o seu cavalo e o seu cão iam por um caminho. Quando passavam perto de uma árvore enorme, caiu um raio e os três morreram fulminados. Mas o homem não se deu conta de que já tinha abandonado este mundo, e prosseguiu o seu caminho com os seus dois animais (às vezes os mortos andam um certo tempo antes de tomarem consciência da sua nova condição…)
O caminho era muito comprido e, colina acima, o Sol estava muito intenso; eles estavam suados e sedentos.
Numa curva do caminho viram um magnífico portal de mármore, que conduzia a uma praça pavimentada com portais de ouro.
O caminhante dirigiu-se ao homem que guardava a entrada e travou com ele o seguinte diálogo:
- Bons dias.
- Bons dias – respondeu o guardião.
- Como se chama este lugar tão bonito?
- Aqui é o Céu.
- Que bom termos chegado ao Céu, porque estamos sedentos!
- Você pode entrar e beber quanta água queira. E o guardião apontou a fonte.
- Mas o meu cavalo e o meu cão também têm sede…
- Sinto muito – disse o guardião – mas aqui não é permitida a entrada de animais.
O homem levantou-se com grande desgosto, visto que tinha muitíssima sede, mas não pensava em beber sozinho. Agradeceu ao guardião e seguiu adiante. Depois de caminhar um bom pedaço de tempo encosta acima, já exaustos os três, chegaram a um outro sítio, cuja entrada estava assinalada por uma porta velha que dava para um caminho de terra ladeado por árvores…
À sombra de uma das árvores estava deitado um homem, com a cabeça tapada por um chapéu. Dormia, provavelmente.
- Bons dias – disse o caminhante.
O homem respondeu com um aceno.
- Temos muita sede, o meu cavalo, o meu cão e eu.
- Há uma fonte no meio daquelas rochas – disse o homem apontando o lugar.
- Podeis beber toda a água que quiserdes.
O homem, o cavalo e o cão foram até a fonte e mataram a sua sede.
O caminhante voltou atrás, para agradecer ao homem.
- Podeis voltar sempre que quiserdes – respondeu este.
- A propósito, como se chama este lugar? – perguntou o caminhante.
- CÉU.
- O Céu? Mas, o guardião do portão de mármore disse-me que ali é que era o Céu!
- Ali não é o Céu, é o inferno – contradisse o guardião.
O caminhante ficou perplexo.
- Deverias proibir que utilizem o vosso nome! Essa informação falsa deve provocar grandes
confusões! – advertiu o caminhante.
- De modo nenhum! – respondeu o guardião – na realidade, fazem-nos um grande favor, porque ficam ali todos os que são capazes de abandonar os seus melhores amigos…
A oração do alfabeto
Tarde da noite, um pobre lavrador no caminho de volta do mercado viu-se sem o livro de orações. A roda da carroça tinha se soltado justo no meio da floresta e ele estava aflito porque o dia ia se acabar sem que tivesse suas orações. Por isso, esta é a oração que fez: Fiz uma coisa muito imprudente, Senhor. Esta manhã saí de casa sem o meu livro de orações e minha memória é ta quenão consigo dizer uma única oração sem ele. Por isso, eis o que vou fazer: recitarei cinco vezes o alfabeto, bem devagar, e o senhor, que conhece todas as orações, poderá juntar as letras e formar as orações que não consigo lembrar. E o Senhor disse aos seus anjos: De todas as orações que ouvi hoje, essa foi, sem dúvida, a melhor, porque veio de um coração simples e sincero!
(Anthony de Mello, extraído de La oração de la rana I)
A criação
A mulher e o homem sonhavam que Deus estava sonhando com eles.
Deus sonhava com eles enquanto cantava e agitava suas maracas, envolto por fumaça, e se sentia feliz e também estremecido pela dúvida e o mistério.
Os índios makiritare sabem que se Deus sonha com comida, frutifica e dá de comer. Se Deus sonha com a vida, nasce e dá nascimento.
A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia um grande ovo brilhante. Dentro do ovo, eles cantavam e dançavam e faziam muita festa, porque estavam loucos de vontade de nascer. Sonhavam que no sonho de Deus a alegria era mais forte do que a dúvida e o mistério; e Deus, sonhando, os criava, e cantando dizia:
– Quebro este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverão e morrerão. Mas nascerão novamente. Nascerão e voltarão a morrer e outra vez nascerão. E nunca deixarão de nascer, porque a morte é mentira.
(Marc de Civrieux, extraído de Watunna. Mitología makiritare)
O tempo
O tempo dos maias nasceu quando não existia o céu nem havia despertado ainda a terra.
Os dias partiram do oriente e começaram a caminhar.
O primeiro dia tirou de suas entranhas o céu e a terra.
O segundo dia fez a escada por onde desce a chuva.
Obras do terceiro foram os ciclos do mar e da terra e a uma porção de coisas.
Por vontade do quarto dia, a terra e o céu se inclinaram e puderam se encontrar.
O quinto dia decidiu que todos trabalhassem.
Do sexto saiu a primeira luz.
Nos lugares onde não havia nada, o sétimo dia pôs terra.
O oitavo cravou na terra suas mãos e seus pés
O nono dia criou os mundos inferiores. O décimo dia destinou os mundos inferiores a quem tivesse
veneno na alma.
Dentro do sol, o décimo-primeiro dia modelou a pedra e a árvore.
Foi o décimo-segundo que fez o vento. Soprou vento e o chamou espírito, porque não havia morte
dentro dele.
O décimo-terceiro dia molhou a terra e com barro amassou um corpo como o nosso.
Assim se lembra em Yucatán.
(Demetrio Sodi, extraído de La literatura de los mayas)
Estrela de mar
Certo dia, caminhando pela praia, reparei em um homem que se agachava a cada momento, pegava algo da areia e o lançava no mar. Fazia a mesma coisa uma e outra vez.
Assim que me aproximei percebi que o que o homem agarrava eram estrelas de mar que as ondas depositavam na areia, e uma a uma as jogava de novo no mar.
Intrigado, o interroguei sobre o que estava fazendo, e ele me respondeu:
– Estou lançando estrelas marinhas novamente no oceano. Como você vê, a maré está baixa e estas estrelas ficaram na margem, se não as jogar de novo no mar morrerão por falta de oxigênio.
– Entendo – lhe disse – mas deve haver milhares de estrelas-do-mar sobre a praia. Você não consegue lançar todas, são muitas. E talvez não perceba que isso acontece provavelmente em centenas de praias ao longo da costa... Não está fazendo algo que não tem sentido?
O nativo sorriu, se inclinou e pegou uma estrela marinha e, enquanto a lançava de volta ao mar, me respondeu:
– Para esta, sim, teve sentido!
(Adaptado de The Star Thrower, de Loren Eiseley)
O milho
Os deuses fizeram de barro os primeiros maias-quiches. Duraram pouco. Eram moles, sem força; se desmoronaram antes de caminhar.
Depois tentaram com a madeira. Os bonecos de pau falaram e andaram, mas eram secos: não tinham sangue nem substância, memória nem rumo. Não sabiam falar com os deuses, ou não encontravam nada para lhes dizer.
Então os deuses fizeram de milho as mães e os pais. Com milho amarelo e milho branco amassaram sua carne.
As mulheres e os homens de milho viam tanto quanto os deuses. E seu olhar se estendia por todo o mundo.
Os deuses soltaram vapor e lhes deixaram os olhos nublados para sempre, porque não queriam que as pessoas vissem além do horizonte.
(Adrián Racinos, extraído de Popol Vuh. Las antiguas histórias de Quiché)
A fábula do beija-flor
Relata a fábula que havia uma imensa floresta onde viviam milhares de animais, vivendo todos em paz e desfrutando daquele lugar maravilhoso. Num certo dia, uma enorme coluna de fumaça foi avistada ao longe e, em pouco tempo, embaladas pelo vento, as chamas já eram visíveis através das copas das árvores. Os animais, para se salvarem do incêndio, começaram a correr, fugindo... Eis que, naquele momento, uma cena muito estranha acontecia. Um beija-flor voava da cachoeira ao fogo, levando gotas d’água em seu pequeno bico, tentando amenizar o grande incêndio. O elefante, admirado com tamanha coragem, aproximou-se e perguntou ao beija-flor:
– Seu beija-flor, o senhor está ficando louco? Não está vendo que não vai conseguir apagar esse incêndio com gotinhas d’água? Fuja enquanto é tempo! Não percebe o perigo que está correndo? Se retardar a sua fuga, talvez não haja mais tempo de salvar a si próprio! O que você está fazendo de tão importante?
E o beija-flor respondeu:
– Sei que apagar este incêndio não é apenas problema só meu, senhor elefante. Eu apenas estou fazendo a minha parte! Preciso deste lugar para viver e estou dando a minha contribuição para salvá-lo! O senhor elefante tem razão quando diz que há mesmo um grande perigo em meio àquelas chamas, mas acredito que se eu conseguir levar um pouco de água em cada voo que fizer da cachoeira até lá, estarei fazendo o melhor que posso para evitar que nossa floresta seja destruída. Em menos de um segundo, o enorme animal marchou rapidamente atrás do beija-flor e, com sua vigorosa capacidade, acrescentou centenas de litros d’água às pequenas gotinhas que ele lançava sobre as chamas.
Notando o esforço dos dois, em meio ao vapor que subia dentre alguns troncos carbonizados, outros animais lançaram-se para a cachoeira, formando um imenso exército de combate ao fogo. E venceram o incêndio... Ao cair da noite, os animais da floresta estavam exaustos pela dura batalha vivida, mas vitoriosos porque permaneceram sobre a relva que duramente haviam protegido.
(León Cadogan, versão)
A consciência
Quando baixavam as águas do Orenoco, as canoas traziam os caribes com seus machados de guerra.
Ninguém podia com os filhos do jaguar. Arrasavam as aldeias e faziam flautas com os ossos de suas vítimas.
Não tinham medo de ninguém. Só tinham pânico de um fantasma que havia brotado de seus próprios corações.
Ele os esperava atrás dos troncos. Ele quebrava as pontes e colocava no caminho cipós enredados que os faziam tropeçar. Viajava de noite; para despistá-los, pisava ao contrário. Estava na colina que desprendia a rocha, na lama que se afundava sob os pés, na folha da planta venenosa e no roçar da aranha. Ele os desmoronava soprando, lhes dava febre pelas orelhas e lhes roubava suas sombras.
Não era a dor, mas doía. Não era a morte, mas matava. Chamava-se Kanaima e havia nascido entre os vencedores para vingar os vencidos.
(María Manuela de Cora, extraído de Kuai-Mare, Mitos aborígenes de Venezuela)
O templo no bosque
Era uma vez um bosque em que os pássaros cantavam de dia e os insetos de noite. As árvores cresciam, as flores prosperavam e criaturas de todos os tipos se reproduziam livremente.
Tudo que entrava ali se via levado à Solidão, que é o lar de Deus, que habita no silêncio e na beleza da Natureza.
Mas chegou a Idade da Inconsciência, justamente quando os homens viram a possibilidade de construir arranha-céus e destruir em um mês rios, bosques e montanhas. Foram levantados edifícios para o culto com a madeira do bosque e com as pedras do subsolo florestal. Pináculos, agulhas e minaretes apontavam para o céu e o ar se encheu com o som dos sinos, de orações, cânticos e exortações.
E Deus se encontrou de repente sem lar.
(Anthony De Mello, La oração de la rana I)
O colibri
A aurora cumprimenta o sol. Cai a noite e ainda trabalha. Anda zumbindo de ramo em ramo, de flor em flor, veloz e necessário como a luz. Às vezes duvida e fica imóvel no ar, suspenso; às vezes voa para trás, como ninguém consegue. Às vezes anda bebadozinho, de tanto beber o mel das coroas. Ao voar, lança relâmpagos de cores.
Ele traz as mensagens dos deuses, se faz de raio para executar suas vinganças e sopra as profecias ao ouvido dos profetas. Quando morre uma criança guarani, ele resgata sua alma, que jaz no cálice de uma flor, e a leva em seu longo bico de agulha, em direção à Terra sem Mal. Conhece esse caminho desde o princípio dos tempos. Antes que nascesse o mundo, ele já existia: refrescava a boca do Primeiro Pai com gotas de orvalho e acalmava a fome com o néctar das flores.
Ele conduz a longa peregrinação dos toltecas à cidade sagrada de Tula, antes de levar o calor do sol aos astecas.
Como capitão dos chontais, plana sobre os acampamentos inimigos, mede a sua força, desce em rasante e dá morte ao chefe enquanto dorme. Como sol dos quechíes, voa até a lua, a surpreende em seu aposento e faz amor com ela.
Seu corpo tem o tamanho de uma amêndoa. Nasce de um ovo não maior que um feijão, dentro de um ninho que cabe em uma noz. Dorme no abrigo de uma folhinha.
(León Cadogan, La literatura de los guaraníes)
A dama ou o tigre?
Havia antigamente um Rei bárbaro e criativo que inventou uma forma estranha de fazer justiça nos casos importantes: convocava o povo ao anfiteatro e colocava o acusado na arena. O réu se deparava com duas portas hermeticamente fechadas. Atrás de uma delas estava uma dama, da outra um tigre. Ele abria uma das duas portas, selando assim sua sorte: se abrisse a da dama, deveria casar-se com ela, mesmo que já fosse casado; se abrisse a outra... já sabemos o que aconteceria. Falta dizer que o pobre réu não tinha qualquer oportunidade de prever qual das portas era a do tigre e qual era a da dama.
Esse Rei tinha uma linda filha, que era a menina de seus olhos. E, como nas histórias de amor mais complicadas, um plebeu (homem de baixa linhagem) apaixonou-se pela filha do Rei e era por ela correspondido. O Rei, ao saber desse amor proibido, ordenou a prisão do namorado de sua filha e marcou a data para que o infeliz comparecesse à arena e enfrentasse a justiça incerta dessa estranha forma de julgar os culpados. O Rei escolheu o tigre mais forte e feroz que havia em seu extenso reino e também a mulher mais bela de toda a sua população.
Chegou o dia marcado. Devemos advertir que a filha do Rei tem privilégios: logo descobriu em que porta estava o tigre e em que porta estava a dama. Mas o caso se complicou porque a Princesa também descobriu quem era a dama destinada a seu namorado, caso ele sobrevivesse ao julgamento fatídico. Essa donzela era uma camponesa graciosa, quase tão bela e inteligente quanto ela. Isso fez o coração da Princesa escurecer. Para ela, seria horrível que seu amado fosse destroçado pelo animal feroz, mas pior ainda ela se sentia ao pensar em seu amado nos braços da bela camponesa.
No dia do julgamento, o jovem pretendente entrou na arena. Caminhando de forma decidida e orgulhosa, dirigiu-se ao camarote principal, onde o Rei presidia o evento acompanhado da Princesa. Fixou seus olhos nos olhos de sua amada e imediatamente confirmou o que pressentia: a Princesa sabia claramente em que porta estava a morte e em que porta estava a dama.
Com um gesto discreto, o rapaz perguntou à filha do Rei qual porta deveria abrir. Sem que ninguém percebesse, a Princesa fez um leve movimento com a mão direita indicando a seu amado a porta que deveria abrir. Ele captou imediatamente o gesto imperceptível da princesa e, com firmeza, encaminhou-se para a porta esquerda.
O problema da decisão da Princesa deve ser considerado com inteligência e sensatez, já que o narrador desta história não pretende ser a única pessoa capaz de resolver o dilema. Por isso abro a discussão, para que todos vocês respondam: quem saiu pela porta aberta, a dama ou o tigre?
(Adaptação do conto A dama ou o tigre?, do escritor norte-americano Frank R. Stockton, (1834–1902))