Um mundo religiosamente plural

Recursos religiosos para uma vida ética

Ao longo dos séculos, as tradições religiosas ensinaram e inculcaram valores éticos em seus fiéis. Há quem sustente que é através da vida religiosa que as crianças aprendem o valor da vida. Este entendimento implica que as religiões, por si sós e como expressões culturais, são os veículos de valores éticos e morais ensinados por meio de textos, parábolas, provérbios, exemplos e práticas.
Significa, além disso, que sem os vínculos básicos da família e da comunidade, o desenvolvimento de seres humanos morais, formados pela sociedade nas normas do comportamento humano, é improvável.
O sociólogo Michael Walzer⒆ disse:
“As sociedades são necessariamente particulares, porque têm membros e memórias – membros que possuem não apenas suas próprias memórias, mas também de sua vida em comum. A humanidade, em contraste, tem membros mas não tem memória e, portanto, não tem história nem cultura, nem práticas habituais, nem modos de vida familiares, nem festivais, nem uma compreensão comum do que é bom para a sociedade. É humano possuir essas coisas, mas não existe uma única forma de possuí-las”.
Um excesso de singularidade pode conduzir à exclusividade e ao chauvinismo. Não devemos subestimar o imenso perigo que representa para a paz e a estabilidade do mundo o extremismo de muitas pessoas que alegam atuar em prol de causas éticas ou em nome de sua religião. No mundo todo, encontramos exemplos de crianças que são ensinadas a encarar os outros como inimigos, incitadas a participar de atos violentos como parte de seu compromisso religioso ou socializadas de
modo a se tornarem insensíveis às necessidades e direitos dos outros. Portanto, nos processos de aprendizagem de todas as tradições religiosas, especialmente em relação à infância, é preciso prestar atenção a quatro dimensões da responsabilidade.

Quatro dimensões da responsabilidade

Primeira: Todas as tradições religiosas, ao promover em suas crianças a fé e os valores de sua própria comunidade, devem assegurar que os valores e a fé serão ensinados e aprendidos em um contexto de respeito aos outros e à sua ‘alteridade’. Uma criança que não aprendeu a se relacionar com aqueles que pensam e atuam de forma diferente não está equipada para viver em um mundo caracterizado pela pluralidade religiosa e cultural.
Segunda: Em suas práticas de ensino, as tradições religiosas devem realizar um esforço consciente para defender os valores religiosos e culturais de seu credo que promovem a tolerância, a honestidade e uma atitude compassiva com outros seres humanos. Esses valores devem ser estimulados desde a mais tenra idade.
Terceira: Embora reconhecendo que as tradições religiosas diferem umas das outras, é necessário buscar aspectos comuns e valores coincidentes que sirvam de base para que as pessoas possam trabalhar juntas em questões de interesse comum. Devemos ensinar e praticar nossa fé de maneiras que demonstrem nossa natureza humana comum e nossa interdependência.
Quarta: Atualmente, enfatizamos também o conceito de ‘educação inter-religiosa’, uma aprendizagem que se produz não de forma isolada mas em relação aos outros. É importante que as crianças valorizem não só sua própria fé, mas que possuam também uma compreensão fundamentada das crenças alheias, bem como dos aspectos comuns que compartilhamos como comunidade humana e em relação a desafios específicos. A vida não discrimina por razões de fé. Seja qual for nosso credo, todos compartilhamos algumas experiências comuns: o nascimento, a morte, a alegria e a dor. Todos buscamos respostas para certas
perguntas existenciais. Frente a estes desafios, os ensinamentos religiosos buscam promover códigos éticos baseados em valores e cada tradição busca transmitir esses valores e essa ética por meio da instrução religiosa, encarnada na vida piedosa.
Na Sessão Especial das Nações Unidas em favor da Infância em 2002, as crianças participantes declararam⒇:
“Prometemos tratar-nos uns aos outros com dignidade e respeito.
Prometemos ser abertos e sensíveis a nossas diferenças.
Somos as crianças do mundo, e apesar de nossas experiências diferentes, compartilhamos
uma realidade comum.
Estamos unidas em nossa luta para tornar o mundo um lugar melhor para todos.
Vocês nos chamam de futuro, mas somos também o presente.”
Atualmente são muitos os adolescentes e crianças que não só entendem este mundo plural como uma realidade, mas também o empregam como um recurso comum: sua compreensão do mundo, suas interações, colaborações e experiências de vida comuns, suas identidades compostas e seus fundamentos éticos são modelados e baseados nessa diversidade recém-descoberta. Lutam unidos para fazer deste mundo um lugar melhor e estão dispostos a ir além das tradições particulares em busca de um código de ética baseado em valores.

O religioso e o leigo

Embora haja uma conexão estreita entre a educação ética e a instrução religiosa, trata-se de coisas distintas. A educação ética transcende as crenças religiosas.
Wilfred Cantwell Smit(21) argumenta:
“Na minha opinião, fé é toda apreciação da beleza, todo anseio de verdade, todo desejo de justiça, todo reconhecimento de que algumas coisas são boas e outras más e de que essa distinção é importante. Qualquer sentimento ou comportamento amoroso, qualquer amor por aquele que os teístas conhecem como ‘Deus’, todos esses e mais são exemplos de fé pessoal e comunitária.” 
Para Wilfred Cantwell Smith, ser uma pessoa de fé consiste, em parte, em saber distinguir entre o que é bom, aceitável ou mau e em crer que tais distinções são importantes. Pessoas que vivem conforme estes princípios talvez não façam parte de nenhuma religião concreta, mas abraçam uma espiritualidade que é sensível à importância das relações positivas na vida comunitária. Às vezes as chamamos de pessoas ‘leigas’ porque não pertencem a nenhuma tradição religiosa específica. Na realidade, são importantes parceiros na construção de um mundo adequado para nossas crianças.

Aprender em relação aos outros

Embora possam ser baseadas em uma tradição religiosa, a fé e a vida ética transcendem as particularidades de qualquer religião. A ética que o Conselho Inter-religioso busca promover se inscreve em um contexto inter-religioso e é centrada principalmente nas relações com os outros. Mais que um sistema de dogmas ou ensinamentos, a ética é uma questão de atitude: uma forma de se relacionar com o próximo, com a natureza e com a própria vida. É através desta atitude e da conduta que provém dela, e não da teoria, que compreendemos nossas próprias tradições e as daqueles que nos rodeiam. Não podemos continuar vivendo como se cada religião fosse uma ilha. No mundo atual, pessoas de diferentes religiões e pessoas que não professam nenhuma religião irão inevitavelmente se encontrar. Em nossas sociedades e comunidades, que se tornaram cultural e religiosamente plurais, a crença do outro passou a ser importante. Assim, o aspecto inter-religioso, em termos tanto de relacionamentos como de abordagem da vida religiosa, tornou-se parte integrante da vida de uma pessoa de fé.
A aprendizagem inter-religiosa deve ser entendida também no contexto da educação de qualidade, como é expressa no objetivo 6 da Declaração sobre Educação para Todos e nos quatro pilares básicos da educação propostos pela UNESCO: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Segundo a UNESCO, uma educação de alta qualidade consiste em criar ferramentas para a vida que os estudantes se sintam aptos e motivados para usar. Inclui também a promoção de um comportamento baseado em valores positivos: compreensão e respeito por todas as pessoas e seus direitos, bem como respeito pela natureza, pelo passado e pelo futuro.
Para o UNICEF, a educação de qualidade prepara os indivíduos para terem vidas bem-sucedidas e cria sociedades saudáveis através do desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores necessários para proporcionar mudanças comportamentais que permitam às crianças, jovens e adultos evitar os conflitos e a violência tanto direta quanto estrutural; solucionar conflitos pacificamente; e criar as condições propícias para a paz, seja em nível intrapessoal, interpessoal, intergrupal, nacional ou internacional. O UNICEF apoia a educação baseada em habilidades para a vida e voltada para a prevenção da violência e a construção da paz, promovendo uma aprendizagem reflexiva, emocional e social alinhada aos quatro pilares da educação.

Rezar juntos ou juntar-se para rezar

Por ocasião do Dia Mundial da Oração pela Paz, celebrado em Assis em 1986, uma clara distinção foi estabelecida: os participantes não estavam ali para rezar juntos, eles se juntaram para rezar.
Isto suscita a questão da oração conjunta. Hoje em dia, pessoas de diferentes religiões se encontram, estabelecem relações e trabalham juntas. As pessoas que convivem em diálogo com os vizinhos de diferentes religiões, tendo experimentando a espiritualidade de outros, talvez desejem que esse processo de crescimento conjunto seja expresso na oração e no culto. Há quem se pergunta se o culto, a oração e a meditação não deveriam ser, de fato, o ponto de partida de uma peregrinação espiritual  inter-religiosa; se essa busca comum não serviria, muito mais que as palavras, para promover o diálogo e a cooperação nas sociedades plurais.
O desejo de compartilhar o culto e a oração surge frequentemente como consequência da preocupação compartilhada por uma comunidade ou em resposta a uma crise ou a uma catástrofe. Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e o tsunami que afetou a Ásia meridional foram ocasiões em que pessoas de diferentes religiões se congregaram em um ato espontâneo de culto e oração. A primeira Guerra do Golfo fez com que judeus, cristãos e muçulmanos se congregassem em diversos países do mundo, no que se poderia considerar um exercício de oração inter-religiosa. Em algumas partes do mundo, a oração inter-religiosa pode ser uma expressão de coesão nacional, como é o caso de determinadas festas cívicas e celebrações comunitárias. São demonstrações de unidade que vão além das diferenças religiosas. Eventos desse tipo podem ser fortuitos e mais ou menos impessoais, mas outros momentos de oração inter-religiosa são mais deliberados: casamentos, celebrações, eventos familiares.
O envolvimento e inclusão das crianças na oração inter-religiosa deve ser feito com grande sensibilidade e respeito por todas as tradições religiosas. O culto e a oração se inscrevem na dimensão espiritual de cada tradição, constituindo o seu próprio núcleo. O ensino inter-religioso promovido pelo Conselho Inter-religioso de Educação Ética para as Crianças é um caminho de aprendizagem delicado e respeitoso que deve ser empreendido em conjunto e com plena consciência de que estamos visitando o sagrado em cada tradição.