Ética e educação ética

Desde que as pessoas começaram a viver juntas em comunidades, tornou-se necessária a regulação moral do comportamento em nome do bem-estar da comunidade; isso é o que conhecemos como ética. É importante que os usuários de Aprender a Viver Juntos cheguem a um consenso sobre o que
são e o que significam a ética, os valores e a educação moral.
Quando perguntamos: “O que a ética significa para você?”, as respostas podem ser muito variadas:
“A ética tem a ver com o que meus sentimentos me dizem que está certo ou errado.”
“A ética se refere a minhas crenças religiosas.”
“Ser ético é fazer o que a lei exige.”
“Ética são as normas de comportamento que nossa sociedade aceita.”
Muitas pessoas tendem a equiparar a ética aos seus sentimentos. Mas ser ético não é simplesmente uma questão de atuar conforme o que você sente, dado que os sentimentos não constituem uma base adequada para determinar o que é ético.
A ética também não pode ser equiparada por completo com a religião. A maioria das religiões defende princípios éticos elevados. Entretanto, se a ética se limitasse à religião, seria aplicável unicamente às pessoas de fé. E a ética se refere ao comportamento tanto da pessoa crente quanto da não crente.Ser ético também é mais do que simplesmente cumprir a lei. Frequentemente a lei incorpora princípios éticos adotados pela maioria dos cidadãos. Mas as leis, assim como os sentimentos, podem se desviar do que é ético. A história nos fala de sociedades cujas leis sancionavam a escravidão. Em várias sociedades, o papel secundário da mulher está consagrado na lei. Provavelmente ainda existem mulheres que se lembram do tempo em que a lei lhes proibia votar.
Da mesma forma, ser ético não consiste em fazer “aquilo que a sociedade aceita”. Os padrões de comportamento da sociedade podem se desviar do que é ético.
Além disso, se agir de forma ética consistisse em fazer “aquilo que a sociedade aceita”, em primeiro lugar seria necessário determinar qual é a norma. Nas questões polêmicas – aquelas que mais nos confundem – a única forma de fazer isto seria realizar uma pesquisa de opinião. Mesmo assim, a falta de consenso na sociedade impediria uma articulação clara do que é o comportamento ético.
Então, o que é ética? Em primeiro lugar, a ética se refere a normas cuidadosamente ponderadas sobre certo e errado que ditam o que os seres humanos devem fazer, normalmente em termos de direitos, obrigações, benefícios à sociedade, justiça ou virtudes específicas. A ética está relacionada às normas que impõem obrigações razoáveis quanto à abstenção de estupro, roubo, assassinato, agressão, ofensa e fraude. Os princípios éticos também estimulam virtudes como a honestidade, a compaixão e a lealdade e a satisfação das necessidades humanas básicas. O sociólogo Johan Galtung perguntou a pessoas de cerca de 50 países o que consideravam essencial para viver, deduzindo do resultado dessa pesquisa as necessidades humanas básicas, como bem-estar, identidade e liberdade⑽.
Em segundo lugar, a ética se refere ao estudo e ao desenvolvimento de padrões éticos. Dado que os sentimentos, as leis e as normas sociais podem se desviar do que é ético, é necessário examinar os próprios padrões para determinar se são razoáveis. E ética também consiste em um esforço contínuo
de avaliar nossas crenças e nossa conduta moral e no empenho de garantir a adesão – tanto de nossa parte quanto da parte das nações e instituições que ajudamos a construir – a princípios razoáveis e bem fundamentados, seja em sistemas de crenças religiosas ou culturais ou em instrumentos internacionais⑾.

Ética, valores e moral

A dificuldade de distinguir entre os conceitos de “ética”, “valores” e “moral” logo se torna evidente.
As seguintes definições aparecem no Dicionário da Língua Portuguesa⑿: 
Ética: Parte da Filosofia que estuda os fundamentos da moral e conjunto de regras de conduta.
Valores: Princípios ideológicos ou morais pelos quais se guia uma sociedade.
Moral: Ciência dos deveres do homem. Bons costumes.
A ética consiste em crenças, ideias e teorias que permitem estabelecer princípios. A moral está relacionada mais diretamente ao comportamento. Valores são aquilo que é aceito por um grupo, comunidade ou sociedade. Todos estes aspectos são importantes e estão inter-relacionados. Uma pessoa pode ter princípios elevados mas não viver de acordo com eles, o que equivale a ter uma ética firme mas uma moral fraca. Os valores de um grupo específico podem ser inaceitáveis para outro. Os filósofos franceses Paul Ricoeur⒀ e Guy Bourgeault⒁, por exemplo, geralmente reservam o termo “ética” para aludir à reflexão fundamental sobre questões essenciais da conduta humana (por exemplo, o propósito e significado da vida, o fundamento da obrigação e da responsabilidade, a natureza do
bem e do mal, o valor da consciência moral) e reservam o termo ‘moral’ para se referir à aplicação, ao concreto, à ação. Além disso, o termo “ética” geralmente sugere um questionamento e uma mente ou espírito aberto, enquanto ‘moral’ via de regra refere-se a sistemas definidos de preceitos, à expressão normativa de regras cujo propósito é orientar a ação.

A ética trata das relações

As exigências éticas, como quer que as concebamos, têm a ver com as relações. O teólogo dinamarquês K. E. Loegstrup introduz a ideia de que a exigência ética que pesa sobre os seres humanos se refrata como a luz através de um prisma, revelando todas as diferentes formas em que estabelecemos relações
uns com os outros⒂.
O tipo de relação que uma pessoa escolhe ter consigo mesma, com os outros e com a Terra, que sustenta todas as formas de vida, constitui a principal manifestação de ética e valores. A fonte das normas e dos comportamentos éticos pode ser atribuída a uma presença divina, como uma revelação por parte de uma Divindade ou mestre espiritual dotado de sabedoria infinita, ou ao conhecimento dos princípios que regem os direitos humanos.
As fontes do comportamento ético podem ser muito variadas, de modo que a questão primordial é em que medida a ética nos ajuda a discernir e responder à interconexão que existe entre todas as formas de vida, a promover valores humanitários e a forjar e estimular um sentido de comunidade.
Todas as comunidades religiosas consideram a ética não como uma parcela limitada da existência, mas como algo que se aplica a todos os âmbitos da vida: ao indivíduo, à família, ao trabalho e à sociedade. A ética islâmica, por exemplo, engloba todas as virtudes morais comumente conhecidas. Ela se ocupa de todos os aspectos da vida individual e coletiva da pessoa: suas relações no lar, sua conduta cívica e suas atividades nas esferas política, econômica, jurídica, educacional e social. Ela abrange toda a vida de uma pessoa, do lar à sociedade, da mesa ao campo de batalha e às conferências de paz – literalmente, do berço à sepultura.
De acordo com esta ênfase tanto no indivíduo como na comunidade, na maioria das religiões tradicionais da África há um dito que reza: “A pessoa é pessoa apenas em relação às outras”.
Em razão desta interconexão, buscamos valores éticos que ajudem as crianças a desenvolver um sentimento de comunidade não apenas com aqueles que estão em seu círculo mais imediato, mas também por cima de barreiras étnicas, nacionais, raciais, culturais e religiosas. Perseguimos e estimulamos valores que promovam um sentimento de responsabilidade mútua em um mundo interdependente.

Existem valores perenes?

Muitas comunidades expressam os valores éticos em termos concretos que determinam atitudes e padrões de conduta, como amor e compaixão, justiça e igualdade, honestidade e generosidade, não-violência e autocontrole. Essas comunidades podem dar ênfase a máximas éticas de caráter universal, como “Amarás ao próximo como a ti mesmo” ou “Não faças com os outros o que não queres que façam a ti”, na crença de que viver de acordo com estes princípios resulta em uma conduta ética. Uma insistência deliberada no desenvolvimento de atitudes e capacidades concretas na infância pode promover naturalmente um comportamento ético.
A UNESCO identificou alguns valores universais relacionados ao crescimento pessoal que tornam a a criança capaz de se relacionar de forma criativa com o mundo que a rodeia: alimentar a autoestima da criança; fomentar sua capacidade de escolher e de assumir a responsabilidade por suas escolhas, sua capacidade de tomar decisões justas, sua disposição para respeitar os outros e seus pontos de vista, sua vontade de assumir compromissos e mantê-los. Estes são exemplos das muitas qualidades que definimos como valores e que devemos cultivar nas crianças para ajudá-las a pensar e agir de maneira ética⒃. Frequentemente são as relações que forjam a identidade da pessoa. Filhas e filhos têm diferentes tipos de relações com a mãe ou o pai; ser aluno em uma escola determina outro aspecto da identidade, assim como o fazem a família e o ambiente cultural. As tradições – familiares, locais e nacionais – forjam a identidade, as crenças e os valores de uma pessoa. Os acontecimentos – pessoais, nacionais, regionais, globais – também contribuem para o processo de formação da identidade.
A identidade religiosa, espiritual e cultural é formada de modo similar. A exposição a diferentes costumes e crenças religiosas e culturais, à singularidade de cada religião e cultura, não diminui a fidelidade à própria tradição religiosa, espiritual ou cultural. Se a realidade, com sua pluralidade religiosa e cultural, é transmitida com uma atitude aberta, afetuosa e harmônica, na qual as figuras de autoridade suscitam respeito e afeto no lugar de temor, não existe ameaça alguma para as próprias tradições. Todo o ambiente educativo deve estar imbuído da noção de aceitação e conhecimento mútuos, assim como da ideia de igualdade em termos de legitimidade, o que significa que todas as crenças ou práticas têm o mesmo valor e nenhuma é considerada superior. Imersos nessa diversidade, devemos salientar o que é comum a todos – nossa natureza humana. A imagem não é a de um caldeirão de culturas onde tudo é mesclado, mas a de um mosaico em que cada identidade cultural tem sua própria importância e reconhecimento, em uma afirmação da riqueza contida na diversidade.
Ter um sentido da própria identidade exige autonomia: independência, liberdade de pensamento, de expressão e de ação e ausência de temor à censura ou ao castigo caso nossas crenças conflitem com as da maioria ou das autoridades governantes. O respeito por si mesmo e a autoestima são essenciais não só porque nos fazem merecedores do respeito dos outros, mas também porque constituem a base do respeito pelos outros.
É comum que a ética seja entendida como uma série de valores pessoais que colocamos em prática em nossa vida cotidiana. Mas o mundo em que vivemos nos obriga cada vez mais a pensar e atuar também em termos globais. A pobreza e a privação de que padecem milhões de pessoas, a exploração abusiva dos recursos do planeta, as crises ecológicas, a escalada da violência e de conflitos bélicos e a cultura da ambição e da acumulação exercem um novo tipo de pressão, obrigando-nos a praticar nossos valores éticos também em nossa vida dentro da comunidade mundial. Nós – e nossos filhos – precisamos de uma sensibilidade ética que nos ajude a estabelecer relações com outras culturas e civilizações, por cima de barreiras nacionais e étnicas e além de identidades e compromissos religiosos. Muitos estão começando a buscar respostas que os ajudem a lidar com o presente e a se preparar para o futuro.

Princípios éticos e valores fundamentais para a educação ética

Já houve várias tentativas de chegar a um consenso sobre valores éticos comuns que todos os grupos religiosos pudessem afirmar e praticar. Uma dessas tentativas foi um documento divulgado em 1993, por ocasião do Centenário do Parlamento das Religiões do Mundo, celebrado em Chicago em 1993 sob a direção de Hans Küng. Este documento, sob o título Rumo a uma Ética Global (Towards a Global Ethic), atualmente é conhecido e aceito em todo mundo e constitui uma fonte de inspiração para um eventual acordo entre povos que possuem pontos de vista diferentes acerca dos valores comuns que deveriam guiar a comunidade humana em seu conjunto⒄.
Desde 1993, foram feitas outras tentativas de elaborar um esboço dos critérios éticos para diversas esferas sociais que possam ser ratificados pela comunidade mundial. Devido à enorme diversidade de religiões, culturas e maneiras de viver existentes no mundo, elaborar e implementar acordos comuns é uma tarefa difícil. Contudo, parece haver um consenso quanto à ideia de que, como uma comunidade humana, devemos tentar chegar a um consenso sobre princípios éticos pelo bem das gerações futuras.
Um aspecto fundamental da criação de um futuro melhor é ajudar as crianças a desenvolverem valores éticos. Contudo, os valores estabelecidos em escala mundial também devem ser aplicáveis em escala local, já que as comunidades de diferentes lugares e culturas, evidentemente, estão em melhor posição para decidir quais valores consideram fundamentais e desejam fomentar em suas crianças.
De qualquer maneira, talvez nos surpreendesse descobrir a quantidade de aspectos coincidentes que existem entre códigos éticos desenvolvidos de maneira independente.

A capacidade de escolher: o melhor presente e a responsabilidade mais difícil

A capacidade de escolher entre diferentes alternativas é um dos grandes dons da vida humana.
Evidentemente, nem sempre obtemos aquilo que escolhemos, mas possuímos a capacidade e o direito de distinguir, rejeitar e escolher. Segundo uma interpretação da tradição judaica, no relato da criação do ser humano, Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mulher, foram colocados no Jardim do
Éden, onde havia duas árvores: a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal.
Adão e Eva foram informados das consequências de comer os frutos destas árvores. Eles provaram o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Foi um erro ou uma escolha deliberada?
Harold Kushner sugere que esta escolha é o que nos faz humanos:
“Nossos primeiros antepassados escolheram ser humanos em vez de viver para sempre. Escolheram o sentido da moral, o “conhecimento do bem e do mal”, em vez da imortalidade. Rejeitaram a Árvore da Vida, que lhes teria dado a vida eterna, em favor da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, que lhes deu uma consciência. Em compensação, Deus concedeu aos humanos – que agora compartilham com Ele a capacidade de distinguir o bem do mal – o dom do Seu próprio poder divino de criar vida. Escapamos da morte não vivendo para sempre, mas trazendo ao mundo, criando e educando as crianças como continuadoras de nossas almas, de nossos valores e até de nossos nomes.”⒅
A capacidade humana de escolher entre diferentes alternativas é reconhecida e afirmada em todas as religiões. Ao mesmo tempo, a capacidade de escolher é uma responsabilidade altamente complexa e desafiadora. Ela requer a habilidade de discriminar, discernir e tomar decisões, enfrentando ao mesmo tempo o dilema da incapacidade de prever e avaliar plenamente o efeito de nossas decisões, que afetam não só a nós mas também ao mundo que nos rodeia. Os  princípios e valores éticos desempenham um papel fundamental ao nos ajudar a fazer essas escolhas.

Salvaguardar e defender a dignidade humana

O conceito da dignidade humana sintetiza aquilo que a educação ética persegue ao promover valores e princípios éticos. A humanidade de uma pessoa é negada quando sua dignidade é conspurcada. A dignidade humana pode ser ameaçada de diferentes maneiras.
A negação das necessidades básicas para a sobrevivência é uma afronta à própria dignidade. Segundo um provérbio Sique, “a boca do pobre é o cofre onde Deus guarda seus tesouros”. Esta frase expressa um dos valores fundamentais comuns a todas as religiões: a dignidade humana. O provérbio afirma que a pobreza, a fome e a privação são uma afronta a Deus. Todas as cerimônias do culto terminam com um langar, uma refeição comunitária aberta a todos, independentemente de casta, Sique nível social, filiação religiosa ou nacionalidade. De fato, nos Gurdwaras, os lugares de culto Sique, há uma cozinha aberta o dia todo para atender não só aos crentes, mas a qualquer pessoa em busca de uma refeição.
Para o islamismo, atender às necessidades dos pobres constitui um dos cinco pilares da fé; todos os crentes devem destinar uma porcentagem de sua renda para ajudar os necessitados. Amar a Deus e amar o próximo como a si mesmo são mandamentos do judaísmo e do cristianismo. Além disso, a tradição judaica afirma que os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus; a tradição veda do hinduísmo considera que Brama, a Realidade Última, e Atman, a Realidade no ser humano, são uma mesma coisa e não duas diferentes. Os ensinamentos de Buda também questionam a discriminação de casta e promovem a igualdade entre mulheres e homens.
As tradições religiosas nem sempre foram fiéis a estes ensinamentos, gerando ocasionalmente estruturas e práticas prejudiciais à dignidade das pessoas tanto dentro como fora de suas próprias comunidades. Entretanto, todas as tradições religiosas consideram a negação da dignidade humana como uma aberração. A dignidade faz parte do que significa ser humano.

Respeito e compreensão mútua

O direito das pessoas à dignidade e ao respeito é básico nos documentos que se ocupam dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção sobre os Direitos da Criança.
A maioria das nações reconhece os direitos universais à sobrevivência, desenvolvimento, proteção e participação para todas as pessoas, sem distinção de idade, gênero, raça ou religião. Um comitê internacional monitora o respeito aos direitos dos menores de 18 anos, que tanto dependem das ações e decisões dos adultos, e apresenta suas observações e críticas a cada país em um documento detalhado. Os direitos compreendidos nestes e outros documentos das Nações Unidas relativos aos direitos humanos são inalienáveis e universais, devendo ser ensinados a todos, de qualquer cultura ou credo. Estes direitos constituem o que a comunidade mundial reconhece como os princípios fundamentais para a natureza humana, não podendo ser objeto de menosprezo, alienação ou modificação por parte de qualquer pessoa ou organização.
Muitas tradições religiosas e leigas estão convencidas da verdade de suas próprias crenças e algumas podem se sentir impelidas a compartilhá-las com os outros. Entretanto, hoje em dia a maioria das tradições reconhece o respeito mútuo como um valor indispensável que deve caracterizar todos os nossos relacionamentos. O conceito de respeito mútuo é importante na medida em que afirma as diferenças e não confunde “diferente” com “errado” nem permite que diferenças naturais e legítimas se convertam em cisões. O respeito mútuo aumenta conforme adquirimos uma maior compreensão e apreciação das diferenças e semelhanças. Ajuda-nos a estabelecer relações apesar de nossas diferenças e contribui para que possamos nos corrigir e nos enriquecer mutuamente e exercer a autocrítica.
O respeito à dignidade de todas as pessoas pode, indubitavelmente, constituir o valor fundamental e o princípio básico da educação ética da infância. A salvaguarda e defesa da dignidade humana implica uma série de valores que ajudam crianças e adolescentes a respeitarem e valorizarem os outros e a si mesmos como seres humanos, fazendo uso de atitudes e de uma mentalidade que contribuem para forjar relações plenas com os outros.
A dignidade é importante no contexto de contínua pluralidade porque, ao longo da história, algumas tradições religiosas adotaram uma atitude de “tudo ou nada” com relação às outras, o que se reflete em posições como: se nossa doutrina é certa, a sua é errada; se temos a verdade, os outros não a têm; se nossos costumes conduzem à realização do destino humano, os dos outros são enganadores.

Empatia e a capacidade de “se colocar no lugar do outro”

Toda relação de afeto é centrada na empatia – a capacidade de penetrar na experiência do outro, compreendendo e compartilhando sua alegria e sua tristeza, sua felicidade e sua angústia.
A empatia combina duas capacidades importantes dos seres humanos, a de analisar e a de compadecer-se, usando ao mesmo tempo a cabeça e o coração. Analisar significa coletar dados sobre um problema, observar as condições, encontrar as causas subjacentes e propor soluções. Compadecer-se significa sentir o que o outro sente, a dor de quem sofre ou a raiva de quem está furioso.
Uma antiga oração dos índios sioux reza: “Oh, Grande Espírito, conceda-me a sabedoria para caminhar nos sapatos do outro antes de criticar ou julgar.” Quando sentimos empatia por alguém, deixamos de lado nossa expectativa de que o outro seja como nós; aceitamos o fato de que ele contribui com algo único para a relação. Ao mesmo tempo, é também a empatia que nos ajuda a ver e reconhecer as injustiças perpetradas contra os outros e a adquirir a determinação de combater essas injustiças.
As tradições religiosas exortam à empatia com os pobres, os marginalizados e os oprimidos. A tradição judaica o confirma dizendo: “[…] porque vocês foram escravos no Egito”. A tradição cristã pede aos discípulos para “recordar aqueles que estão presos como se fossem seus companheiros na prisão e aqueles que são maltratados como se fossem vocês que sofressem”. A tradição islâmica se refere ao mês do Ramadã como o mês da paciência, da empatia e da autopurificação. Para os budistas, o equivalente da empatia é a bondade afetuosa, que para eles vai muito além da compaixão – uma mera forma de pena pelo outro – e aponta para a absoluta e imediata identificação com o outro que conhecemos como empatia. Os direitos humanos são construídos sobre a base da igualdade absoluta: os direitos são universais e algumas pessoas têm a responsabilidade concreta de fazer com que os direitos dos outros sejam respeitados, como exemplifica a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Cuidar do cumprimento dos direitos dos outros é fundamental tanto nas tradições religiosas quanto nas seculares.
O chamado à empatia pela experiência do outro talvez seja um dos valores mais extraordinários que podemos legar às nossas crianças.

Responsabilidade individual e coletiva

Estamos, cada vez mais, descobrindo o significado da palavra “responsabilidade” quando nos defrontamos com os problemas do mundo. Muitos são os que se apressam a exigir seus “direitos”, mas esquecem as responsabilidades que acompanham esses privilégios. Somos responsáveis pela maneira como criamos nossos filhos; se negligenciamos essa responsabilidade, eles podem se desencaminhar. Os governos são responsáveis pela manutenção da coesão e da paz social; quando ignoram esta responsabilidade, o resultado pode ser o caos social. É responsabilidade e obrigação da sociedade garantir a distribuição justa dos recursos e a satisfação das necessidades básicas; a negligência pode resultar em conflitos e violência. Todas as pessoas têm a responsabilidade de cuidar da Terra; o descaso com essa responsabilidade nos colocou à beira do desastre ecológico.
A lista pode ser ampliada para abranger praticamente todas as relações pessoais, sociais e globais. Todas as relações dependem da responsabilidade mútua e do cumprimento, por cada um, de suas obrigações para com a sociedade. Uma responsabilidade coletiva de cuidar uns dos outros poderia permitir que vivêssemos em um mundo mais justo e pacífico.
A responsabilidade não é uma escolha: é um valor ético fundamental que deve ser consagrado nos corações e mentes das crianças desde o momento em que começam a estabelecer relações com os outros e com o mundo à sua volta.

Reconciliação e a abordagem de construção de pontes

Muitos encaram a reconciliação como um dos passos para implantar a paz e reparar relações no âmbito pessoal e comunitário. Hoje em dia, é cada vez mais óbvio que a reconciliação não é só uma ação prática, mas também um projeto de vida. Em outras palavras, a reconciliação não só é um remédio; é uma orientação para lidar com os problemas inevitáveis, as profundas divergências e conflitos que ocorrem na vida comunitária. A reconciliação passou a ocupar o primeiro plano como valor ético devido à tendência humana de solucionar diferenças e desavenças recorrendo à violência.
A violência parece ser concebida como um meio fácil e rápido de resolver conflitos, mas não oferece uma solução duradoura. Ao contrário, tudo o que faz é exacerbar a inimizade e a insatisfação. O ânimo conciliador deve ser enfatizado como um valor ético imprescindível em nossos dias.
Aprender a Viver Juntos se concentra em quatro valores éticos que devem fazer parte da educação ética das crianças em uma sociedade globalizada caracterizada pela pluralidade religiosa e cultural. Esses quatro valores – respeito, empatia, reconciliação e responsabilidade – não constituem uma lista  exaustiva nem excluem outros valores. A educação ética para a infância não pretende implantar uma lista de valores nas crianças, mas alimentar nelas a espiritualidade necessária para viver em um mundo plural. É necessário ressaltar que os valores éticos e a espiritualidade não constituem duas vias diferentes de comportamento, mas estão relacionados e enriquecem-se mutuamente. Uma pessoa espiritual será também uma pessoa eticamente correta; e uma pessoa eticamente correta exibe uma espiritualidade que outros procuram imitar.

A educação ética

O Conselho Inter-religioso de Educação Ética para as Crianças promove uma abordagem e uma atitude com relação ao outro que se refletem na própria pessoa.

Fluxograma Aprender a Viver Juntos

Esta imagem ilustra um processo de aprendizagem que evolui como uma espiral. A aprendizagem, com espaço para o pensamento crítico, é o que permitirá às crianças e aos adolescentes forjar e praticar uma relação positiva consigo mesmos, com os outros, com o meio ambiente e com aquilo que conhecemos como Deus, Realidade Última ou Presença Divina. O estabelecimento dessas relações positivas enriquecerá sua espiritualidade inata, abrindo caminho para o crescimento, a compreensão mútua e o respeito às pessoas de diferentes religiões e civilizações. Isso, por sua vez, permitirá que as crianças e adolescentes formem alianças com os outros para construir um mundo baseado em valores e práticas que salvaguardem a dignidade humana e promovam a solidariedade, a responsabilidade individual e coletiva e a reconciliação. A aprendizagem implica que as crianças e os adolescentes adquiram e pratiquem uma visão da vida fundamentada na ética e nos valores, que deixe espaço para o livre pensamento crítico e nutra a espiritualidade.
O Conselho Inter-religioso promove um modo novo e dinâmico de conceber a ética em uma sociedade globalizada e plural. É algo que todas as religiões e sociedades podem fazer de maneira independente; o que é único nesta iniciativa é seu caráter inter-religioso. O Conselho Inter-religioso não promove uma nova religião, mas reconhece e afirma a diversidade. Não se trata de um novo “ensinamento”, mas de uma forma nova de enfatizar a necessidade de estabelecer relações positivas.
Trata-se de um enfoque:
> intercultural
> inter-religioso
> que afirma a diversidade, e
> que afirma o diálogo e a comunicação consigo mesmo e com os outros em um processo contínuo de aprendizagem individual e coletiva.
Ao longo deste processo de aprendizagem vai se criando o espaço necessário para o intercâmbio, a interação e o entendimento. Ao promover o pensamento crítico, o entendimento e a abertura mental em relação ao outro, este processo capacita as crianças, jovens e adultos para descobrir sua própria tradição, seus próprios valores e os valores e tradições alheios. Assim, a interação com os outros gera possibilidades de enriquecimento mútuo em um contínuo ‘dar e receber’ que faz parte de uma natureza humana conjunta.

 

10. Johan Galtung, Human Needs, Humanitarian Intervention, Human Security and the War in Iraq, discurso inaugural, Universidade Sophia, Tóquio, 2004. http://www.transnational.org/SAJT/forum/meet/2004/Galtung_HumanNeeds.html
11. Adaptado de Hans Ucko, ’Ethics, law and commitment’, Current Dialogue, Edição 46, dezembro de 2005, http://www.wcc-coe.org/wcc/what/interreligious/cd46-09.html
12. Dicionário PRIBERAM da Língua Portuguesa. www.priberam.pt
13. Paul Ricoeur, Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1990.
14. Guy Bourgeault, L’éthique et le droit face aux nouvelles technologies médicales, Les Presses de l’Université de Montréal, Montreal, 1990.
15. K.E. Loegstrup, Ethical Demand, University of Notre Dame Press, Notre Dame e Londres, 1997.
16. A UNESCO enumera estes e muitos outros “valores humanos” em Eliminating Corporal Punishment: The Way forward to constructive Child Discipline, Stuart N. Hart (Ed), Paris, UNESCO, 2005. A lista de valores foi elaborada por um painel de cinco especialistas internacionais na esperança de que reflitam valores éticos/morais que transcendam as fronteiras culturais.
17. Declaração Rumo a uma Ética Global. Conselho do Parlamento das Religiões do Mundo, em: http://www.parliamentofreligions.org/_ includes/FCKcontent/File/TowardsAGlobalEthic.pdf