"Quando a institucionalização é a solução, crianças e adolescentes entram no rol de indesejáveis", essa é a afirmação da pesquisadora Irene Rizzini, durante seminário "Nós da História: 20 anos das novas retóricas de proteção aos direitos humanos de crianças e adolescentes", que aconteceu na UFPR, em Curitiba/PR. A entrevista foi publicada no jornal "Gazeta do Povo", no dia 05 de outubro de 2010.

A política de enviar crianças para instituições de proteção só porque os pais são pobres criou uma geração de “desaparecidos” no Brasil. Não à toa, o maior desafio do país é criar e manter políticas públicas capazes de impedir que metade das crianças brasileiras continue na pobreza, diz a pesquisadora Irene Rizzini. “É impossível criar uma criança com dignidade quando se vive na miséria”, argumenta. Ela é pós-doutora em Sociologia e Ciência Política pela Univer sidade de Notre-Dame, presidente da Child watch International Research Network e professora da Ponti fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 

 

 

 

A senhora fala sobre uma geração de crianças "desaparecidas" tiradas dos pais. Como isso ocorreu?

É o que chamamos de cultura da institucionalização, que não nasceu no Brasil. Isso fez parte dos primórdios da discussão sobre caridade, depois filantropia. As instituições foram se apresentando como soluções para crianças desde a “roda dos expostos”, na Idade Média. Em muitos casos, a institucionalização foi tida como solução. Assim ocorreu na psiquiatria (em relação às pessoas com problema de saúde mental) e com a população de rua, por exemplo. Crianças e adolescentes entraram nesse rol de indesejáveis. Essa prática foi condenada no decorrer do século passado porque não resolvia o problema, só agravava, e inclusive desresponsabilizava a família. Hoje, há várias consequências dessa prática, mas procuramos revertê-la. Nos casos em que a criança precisa ser afastada dos pais biológicos, é preciso avaliar as melhores alternativas de cuidado sem que se rompa os laços familiares. São raros os casos em que a criança não tem ninguém que se importe com ela.


Qual avaliação pode ser feita desses 20 anos do ECA?

Foram muitos avanços. Não somos mais o mesmo país de antes de julho de 1990, assim como o mundo não é mais o mesmo depois de ratificar a Convenção Sobre os Direitos da Criança, das Nações Unidas, em 1989. Dizer hoje que as crianças são sujeitos de direitos não são meras palavras. Mudamos completamente a concepção de infância e juventude ao afirmar que eles têm voz e têm direito como qualquer outra pessoa. O Brasil mudou o discurso sobre os direitos, na aprovação de novas leis e políticas baseadas no paradigma dos direitos humanos. O país tem importante liderança na América Latina e é um exemplo na implementação do sistema de garantia de direitos.

Mas e quanto à prática?

Somos um exemplo, mas por outro lado, temos falhado na efetivação desses direitos, principalmente para a parcela mais pobre. Metade de nossas crianças com menos de 6 anos de idade vive abaixo da linha da pobreza. Para reverter isso é necessário investir já no primeiro ciclo de vida. Não é possível que um país rico como o Brasil permita que metade de sua infância viva abaixo da linha da pobreza. Meninos e meninas vivem em condições adversas e as violações vão se multiplicando. A superação disso tem de englobar políticas de médio e longo prazo.

Era comum crianças serem separadas dos pais só por causa da pobreza da família. Isso ocorre ainda hoje? Como reverter esse quadro?

A pobreza ainda é a principal causa que separa a criança de seu contexto familiar, ferindo o artigo 19 do ECA. A demanda pela instituição ainda é muito forte, principalmente em função do índice de pobreza. A consequência é que muitas famílias, sobretudo mães em situação de maior vulnerabilidade, procuram alternativas e não encontram suporte, em especial de políticas básicas. É natural que busquem qualquer coisa que as ajude a criar os filhos. Essa demanda precisa ser revertida desde o pré-natal até os primeiros anos de vida, para que tenham alimentação adequada. A intervenção nas famílias que sofrem com violações de direitos também deve ser reanalisada porque é uma atribuição dada ao Conselho Tutelar, que atende situações complexas desde fome até abuso sexual. É necessário que essas questões sejam melhor discutidas para evitar que determinado órgão fique com missões impossíveis de resolver.

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1054017