Confira a entrevista de Clóvis Boufleur, gestor de Relações Institucionais da Pastoral da Criança, para o caderno Cidadania, do Jornal Gazeta do Povo/Curitiba, publicada no dia 26 de junho de 2010.


Há 26 anos, uma metodologia de trabalho baseada na solidariedade entre as famílias tem contribuído para reduzir a desnutrição e mortalidade infantil nos lugares mais pobres do país. São as pesagens e as visitas mensais às famílias de crianças pobres menores de 6 anos e gestantes feitas pelos voluntários da Pastoral da Criança.

 
 
 
O poder que emana do povo

Organismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Pastoral foi criada em 1983 pela médica e sanitarista Zilda Arns Neumann, que morreu em janeiro deste ano, e implantada inicialmente em Florestópolis, no interior do Paraná. Em me­­nos de um ano, o projeto reduziria a mortalidade infantil de 127 para 28 mortes para cada mil crianças que nasciam vivas por ano.

Hoje, os quase 230 mil voluntários da Pastoral da Criança acompanham mais de 1,5 milhões de crianças pobres menores de seis anos em 3.978 municípios do Brasil. Eles demonstram que, de um jeito muito simples e com poucos recursos é possível transformar a realidade social à sua volta.

Leia entrevista com Clovis Boufleur, gestor de relações institucionais da Pastoral da Criança e representante da CNBB no Conselho Nacional de Saúde.

Se uma pessoa for muito pobre consegue exercer a cidadania?
Desconheço que uma pessoa rica ou pobre pratique mais ou menos atos de cidadania por causa da sua situação social. Entendo que cuidar das pessoas, do ambiente, ser justo e respeitar as leis ou as regras de convivência, que são as ações básicas de cidadania, estão ao alcance de todos. O fato é que, em certas situações, as pessoas podem não querer colaborar com a cidadania. Em outras, elas po­­dem estar impedidas. Uma coisa é certa, cada gesto pode contribuir ou não para atender uma necessidade de alguém, transformar a comunidade, fortalecer a solidariedade e melhorar a vida das pessoas, inclusive, de quem pratica atos de cidadania.

A dra. Zilda Arns costumava dizer que, ao ajudar o próximo, os líderes da Pastoral transformavam a realidade à sua volta e ganhavam mais autoestima. Como isso acontece?

A Pastoral contribui para neutralizar o egoísmo e a solidão, que são as raízes da baixa autoestima. Além disso, para nos tornarmos sensíveis e entender melhor os outros, as líderes aprendem que é preciso entender e amar a si mesmo, e como dizia dra. Zilda, “ver também o lado positivo das coisas”.

Assim, os líderes voluntários se comprometem com uma causa na qual acreditam, trabalham com amor, organizam-se com outros sujeitos sociais e são capazes de lutar para que a sociedade tenha menos sofrimento e mais justiça social. Essa é uma verdadeira terapia para melhorar a autoestima, com benefícios que o dinheiro não pode comprar.

De que outras formas, além do trabalho do voluntário, uma instituição como a Pastoral ajuda na construção da cidadania?

O desenvolvimento com justiça social é fruto da cidadania. As melhorias na qualidade de vida promovidas pela Pastoral da Criança contribuem para o desenvolvimento das comunidades no Brasil. O acesso às informações amplia as condições sociais das líderes e das famílias. Existem estudos da Organização das Nações Unidas (ONU) que mostram o quanto as organizações do terceiro setor podem influenciar no desenvolvimento nacional, com forte impacto no Produto Interno Bruto (PIB) da nação.

A Pastoral da Criança investe na educação das líderes, das mães e da família porque o núcleo familiar é a principal célula promotora do desenvolvimento das crianças, e a primeira e mais influente fonte educadora. É por meio das relações com a mãe e com todos os membros da família que a criança começa a formar uma boa imagem de si mesma, sentir-se membro de um grupo, capaz de aprender e de compreender o mundo. Além de salvar vidas, as ações preventivas da Pastoral da Criança evitam gastos públicos e privados com tratamento de doenças e com as consequências da violência doméstica.

Até que ponto o cidadão pode contribuir com a sociedade sem assumir as responsabilidades do Estado?
Precisamos admitir que existem governos que não fazem o que devem. Isso, porém, não é razão para se concluir que a participação dos voluntários compete ou diminui as responsabilidades do Estado em relação à garantia dos direitos da população. Os voluntários também não substituem os trabalhadores formais. Existem ações sociais que são próprias da sociedade organizada e, nessas áreas, ela faz melhor que o Estado. As entidades sociais devem ser valorizadas e prestigiadas pelo governos pelo muito que contribuem para a nação, e não o contrário.

Muitas pessoas são descrentes no voluntariado alegando que ele não traz o verdadeiro desenvolvimento da sociedade.

Vou citar uma situação concreta. Como sabemos, o pré-natal e os cuidados durante a gravidez que envolvem a gestante e a criança previnem a mortalidade infantil. Ao acompanhar as gestantes e orientar sobre os seus direitos e deveres, os voluntários da Pastoral contribuem para que as futuras mães cobrem qualidade dos serviços de saúde e a oferta de, no mínimo, seis consultas de pré-natal, acompanhadas de exames, medida da curva uterina, vacinas, orientações e tratamentos adequados. Com isso mortes maternas e de crianças deixam de acontecer.

O brasileiro é cidadão ou ainda vive um aprendizado da cidadania?
A prática da cidadania é cotidiana, e depende de atitudes simples, como dialogar em casa, ajudar os outros, respeitar as regras da sociedade e cuidar do ambiente. A partir deste entendimento, ela é um aprendizado permanente. Mas existem estágios na vivência da cidadania. Infelizmente, temos um certo distanciamento entre o que seria possível fazer e o que realmente acontece. Ainda lutamos para atingir aspectos universais elementares da cidadania, que é o direito de ter o registro de nascimento, ser alfabetizado, ter casa, alimentação, trabalho. Somos um povo generoso e solidário, mas precisamos organizar essa nossa força, para acompanhar os passos largos do desenvolvimento de outras áreas como a economia e a tecnologia. O perigo desse descompasso é aumentar a desigualdade no país, o que é uma ameaça para a cidadania. Estamos em um momento privilegiado de acesso ao conhecimento e oportunidades para o exercício de ações colaborativas e de fortalecimento da sociedade que podem acelerar nossos compromissos com a cidadania.

A cidadania é algo que o Estado tem que estimular ou deve emanar da sociedade a partir dos próprios cidadãos?

O Estado ajuda ao cumprir as suas obrigações de modo a oferecer condições para que a cidadania se fortaleça. O Estado não deve ser omisso ou se colocar contra a cidadania e seus fundamentos. Afinal, estamos falando de direitos e deveres que atingem pessoas individualmente, mas também o coletivo, as comunidades. Na Constituição Federal esta visão está clara – o Estado deve estar a serviço da cidadania e prever a participação da comunidade. Neste aspecto, as entidades e movimentos sociais são uma das expressões desta participação.
 
 
26/06/2010 | 00:07 | Annalice Del Vecchio