Em entrevista realizada em janeiro de 2011, Isabella Henriques, advogada e coordenadora geral do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, aponta os atuais marcos legais da publicidade de alimentos voltadas para o público infantil e reflete sobre a iniciativa da Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos, movimento que reúne amplo leque de organizações.
Como surgiu a Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos, em dezembro de 2010?
A ideia da Frente resulta de um movimento natural. Ela é formada, em sua grande maioria, por organizações que participaram da consulta pública que acabou gerando a resolução número 24/2010 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) [dispõe sobre a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional].
Este grupo de entidades percebeu que a nova norma – que trazia alguns avanços – não estava sendo efetivamente colocada em prática. Isso ocorreu por conta de uma decisão provisória do poder Judiciário, tomada em meio a uma grande pressão das indústrias do setor alimentício para que não haja nenhum tipo de regulação do tema.
Então, as instituições que hoje fazem parte da Frente entenderam que era necessário se agrupar e se manifestar publicamente. O objetivo é criar um contraponto às pressões que as empresas têm feito no sentido de barrar projetos de lei e outras medidas regulatórias que tratem da publicidade de alimentos. A Frente é bastante plural. Contamos com entidades que trabalham no âmbito da saúde, dos direitos do consumidor, dos direitos da criança, entre outras áreas.
Como a Frente vê o problema do aumento da obesidade, especialmente em crianças e adolescentes?
O problema é muito grave, de âmbito mundial. É uma pandemia. O Brasil, como diversos outros países, caminha para um crescimento dos índices de sobrepeso e de obesidade – não só na infância, mas em todas as faixas da população a curva é ascendente. A população brasileira já apresenta índices alarmantes, e o grande problema da obesidade é que ela está associada com o desenvolvimento das chamadas “doenças crônicas não-transmissíveis” – a grande causa de mortalidade no país.
No Brasil, 30% das crianças estão com sobrepeso, enquanto 15% enfrentam problemas de obesidade. Fazendo um cruzamento entre esses dados (que têm origem tanto no Ministério da Saúde como no IBGE), encontraremos cerca de 5 milhões de crianças até 12 anos de idade já sofrendo de obesidade. Não são apenas crianças que estão acima do peso, são crianças obesas, que já têm problemas sérios de saúde. E sabe-se que metade delas leva esse problema para a vida adulta.
Então o prognóstico é muito ruim. Se hoje já temos uma parcela significativa das crianças com sobrepeso, os índices entre os adultos tendem, no futuro, a crescer. E o impacto em termos de gastos públicos é gigantesco. Todos nós pagamos esta conta, até porque a grande maioria dessa população com obesidade ou sobrepeso está nas camadas mais vulneráveis da população, que utilizam serviços de saúde e previdência pública. Portanto, além dos impactos gravíssimos quanto à saúde do indivíduo, nós geramos também um problema financeiro para os cofres públicos.
Como os especialistas avaliam o papel da publicidade para o aumento da obesidade em crianças e adolescentes?
A publicidade é um fator preponderante para o aumento dos índices de obesidade, especialmente na infância. Sabemos que a questão da obesidade é multifatorial – sendo relevantes, dentre outros elementos, questões de ordem genética, os hábitos alimentares, a intensidade da atividade física e a educação alimentar. Como já foi comprovado no mundo inteiro, a publicidade também é um desses fatores, e está entre os mais importantes.
A publicidade que fala diretamente com as crianças geralmente, apresenta alimentos que possuem altos teores de gordura saturada, de gordura trans, de açúcar e de sódio. Hoje, quase 90% da publicidade de alimentos voltada ao publico infantil é de produtos pouco saudáveis. Na grande maioria dos casos busca chamar a atenção da criança através de personagens infantis, da distribuição gratuita de brinquedos, de brindes. Isso sem que a criança tenha condições de discernir, de fazer uma análise sobre a adequação desse alimento.
Então, de fato, a publicidade tem um peso muito importante nessa questão. Se houver um interesse genuíno de que ocorra uma diminuição da obesidade na população é necessário que haja uma política pública com relação à publicidade. No campo específico da infância, em especial de pessoas de até 12 anos de idade, o ideal é que não houvesse nenhum tipo de publicidade que falasse diretamente com esse público.
Para além da restrição da publicidade, não seria necessário desenvolver programas educacionais mais amplos para a redução da obesidade?
Sim, sem dúvida. O ideal é que haja uma política pública ampla para combater a questão da obesidade, que envolva um processo de educação alimentar, uma mudança de hábitos alimentares em toda a população e um incentivo à prática de atividades físicas. Tudo isso é muito importante.
Mas a retirada desse tipo de publicidade dirigida ao publico infantil (alimentos com altos teores de sódio, gorduras e açúcar) e a exibição de alertas informativos para a população adulta certamente trariam uma redução dos índices de obesidade e sobrepeso.
Você enxerga a publicidade de alimentos na programação dirigida para crianças e adolescentes como uma estratégia crescente por parte das empresas?
Existe uma grande discussão ao redor do mundo a respeito da obesidade. Como as grandes empresas do setor alimentício são multinacionais – tais como Nestlé, Coca-Cola, McDonald’s, PepsiCo, Mars e Kellogg – e este debate vem sendo travado em outros países, já foram estabelecidas diversas restrições à atuação dessas empresas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem, reiteradamente, apresentado resoluções para que a publicidade dessas empresas tenha limites e seja restringida. A Inglaterra, em 2006, aprovou uma nova legislação proibindo qualquer publicidade de alimentos com altos teores de sódio, gorduras e açúcar para o público de até 16 anos de idade na televisão. Diversos outros países, como a Austrália e o Canadá, têm criado regulamentação específica. No caso específico dos EUA, o poder público resolveu reforçar o apoio à prática de atividades físicas, com a iniciativa Let’s Move, ou “Mexa-se”, em uma tradução literal. São tentativas de combater a obesidade que não vão pelo caminho da regulação da publicidade em si, mas demonstram uma preocupação com o tema.
No caso brasileiro, essas mesmas empresas multinacionais continuam fazendo suas publicidades, seus anúncios, direcionando suas mensagens ao público infantil. E estes materiais são cada vez mais elaborados, para tentar escapar dessas novas restrições que estão sendo pensadas, e, principalmente, tentar dar uma resposta às críticas que as empresas estão recebendo.
Nos pacotes de salgadinho da PepsiCo, por exemplo, sempre há uma menção “salgadinho assado”, “0% de gordura trans”. É uma forma de tentar falar ao consumidor: “esse produto é saudável”. Entretanto, a informação de que aquele produto possui alto teor de sódio não é repassada da mesma forma e com mesmo destaque. Da mesma maneira, a Kellogg tem trazido informações de que seus produtos estão sendo feitos com farinha integral. A Nestlé também tem uma linha integral de cereais, mas continua, ao mesmo tempo, vendendo brindes e brinquedos colecionáveis dentro das embalagens. Elas estão tentando, de alguma forma, dar uma resposta para a sociedade, mas não é uma resposta que de fato causa alguma mudança.
Daí a necessidade de que haja uma medida efetiva por parte do poder público, seja no âmbito Legislativo, do Executivo ou do Judiciário em relação a essa questão. O comportamento da indústria tem demonstrado – em função das limitações dos compromissos assumidos publicamente e no âmbito da atuação do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) – que a autorregulação não é suficiente. Então, o que vemos é que elas estão tentando burlar de alguma forma as novas regras, estão tentando dar uma resposta, mas na prática não estão fazendo nada que seja efetivo, e que tenha um resultado positivo para população.
Nesse ano de 2011, quais são os debates regulatórios mais importantes para o setor da publicidade?
No âmbito do Poder Legislativo há vários projetos de lei que tratam dessa questão. Existem projetos que, por exemplo, proíbem empresas alimentícias de venderem brinquedos ou a venda casada desses brindes.
Projetos de leis semelhantes ao texto da consulta pública número 71 tramitam no Senado e na Câmara dos Deputados, mas não existe uma expectativa de que eles caminhem e sejam aprovados, e também não é possível delimitar o tempo que tudo isso pode levar.
E como a Frente pretende seguir atuando no caso específico da resolução número 24 da ANVISA?
A Frente pretende dar mais apoio à resolução, pois a discussão ainda segue. Hoje há uma decisão liminar por parte da Justiça Federal de Brasília (mantida pelo Tribunal Regional Federal da região do Distrito Federal), que permite a todas as associadas à Associação Brasileira das Indústrias Alimentícias (Abia) a não cumprirem a norma – até que haja uma decisão definitiva por parte do poder Judiciário. Não temos a previsão de quando o Judiciário vai se manifestar definitivamente. Ainda que em primeira instância haja uma sentença, a decisão definitiva só vira com o trânsito em julgado da ação, incluídos prováveis recursos e um eventual encaminhamento ao Superior Tribunal de Justiça e ao Superior Tribunal Federal. Então não há como saber de antemão quanto tempo tudo isso pode levar.
Ainda no âmbito da resolução número 24 está pendente, por parte da Advocacia Geral da União (AGU), um parecer definitivo sobre a questão. Nós sabemos que a consultoria da AGU já se manifestou, mas ainda não há decisão do Advogado Geral da União sobre qual vai ser a posição do órgão a respeito da legalidade e constitucionalidade da resolução da ANVISA. Esta decisão também é muito importante, porque pode dar subsídios para a discussão no âmbito do poder Judiciário.
(Entrevista publicada no Portal da Andi (www.andi.org.br)