Cheia do Rio Acre atingiu a capital, Rio Branco, e outros cinco municípios.
Aprendemos ainda na escola que o Brasil é o país com maior potencial hídrico do planeta. Entretanto, nem esse “título” livrou a população de sofrer por causa da água – seja pela falta ou pelo excesso. Há meses, jornais, revistas e diversos programas de TV, vêm tratando a escassez de água em alguns estados. São Paulo foi o primeiro a ficar em alerta. Recentemente Rio de Janeiro e Minas Gerais passaram a ter o consumo de água observado de perto pelos responsáveis. Possíveis racionamentos colocaram os estados em alerta e o restante do país em um questionamento constante: onde estamos errando?
Consumo e prevenção
Em primeiro lugar é preciso lembrar que toda a água potável não é o total da água disponível para consumo. Ela é um volume muito menor. Menos de 1% da água doce do mundo é considerada potável. Por isso, o consumo de água individual é tão debatido. Atualmente o Brasil tem uma média de consumo 160 litros diários por habitante, enquanto o necessário indicado pela Organização das Nações Unidas, por pessoa, é de 110 litros. Nos estados do Rio de Janeiro e Maranhão, esse consumo ultrapassa os 200 litros diários.
Outra questão é que as pessoas pouco associam o consumo desenfreado – leia-se a geração de resíduos – com a água. Começa pelo descarte correto de lixo, que também influencia na limpeza de rios e lagos, e vai para a necessidade da indústria para produzir os materiais que cada consumidor adquire. Quanta água é necessária para produzir uma camiseta de algodão, por exemplo? Desde a plantação até ela chegar à loja, quanto de água é consumido? A discussão do consumo de água pelas indústrias e pela agricultura também tem ganhado cada vez mais espaço no debate do consumo, já que irrigação é responsável por mais de 70% da água consumida no Brasil. Por outro lado, a falta de água compromete o abastecimento de alimentos, tornando-os escassos e mais caros.
Há ainda questões políticas: o desperdício de água até a chegada à casa dos consumidores é o tipo de obra que “aparece pouco”, tem um alto investimento, e que nem todo político está disposto a realizar. Em 2011, um estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) já alertava que, em 2015, 55% dos municípios brasileiros poderiam ter déficit no abastecimento de água. Entre os municípios apontados estavam as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre e o Distrito Federal. Algumas dessas cidades são as citadas nos jornais pela escassez de água nos últimos meses.
Excesso
Dra. Zilda
“Só apontar o que deixaram de fazer é muito mais fácil do que a gente arregaçar as mangas e participar. E se a gente participa, as pessoas respeitam mais a gente e as coisas começam a acontecer de fato”.
Papa Francisco
"A Criação é um dom maravilhoso que Deus nos deu, então devemos cuidá-lo e usá-lo para o benefício de todos, sempre com grande respeito e gratidão".
Enquanto as represas de São Paulo têm funcionado com níveis mínimos de água, a população também tem que lidar com o excesso do bem: cada sinal de chuva um pouco mais intensa também é sinal de que pode acontecer uma inundação. E isso pode ser explicado tanto pelo cuidado com o descarte correto do lixo, como também pode ser relacionado com questões políticas, como citado anteriormente.
Em janeiro de 2011, as enchentes, aliadas a deslizamentos de terra na região serrana do Rio de Janeiro, deixaram mais de 900 mortos e 300 desaparecidos. A população do Acre nunca havia visto, até fevereiro de 2015, uma cheia tão grande do Rio Acre. Pelo menos quatro cidades sofreram com a cheia do rio, que corta todo o estado, e que chegou a atingir 18 metros acima de seu nível normal.
Mas, frente a esse cenário, qual o papel de cada um? E como líder comunitário, o que é possível fazer? Pensando nisso, a Pastoral da Criança traz exemplos de como lidar com a água em diferentes situações e em diferentes regiões do país.
Acre (AC)
O nível do Rio Acre alcançou 18,4 m durante as enchentes que atingiram o estado da região Norte no fim do mês de fevereiro e início de março deste ano. Pelo menos cinco municípios foram atingidos pela cheia do Rio Acre, e outras três cidades sofreram com a cheia de outros rios da região. Em Rio Branco, uma das estações de tratamento de água também ficou inundada, e por poucos centímetros o sistema de captação que abastece 65% do município não foi atingido. “A situação está precária”, conta Maria José Oliveira de Souza, voluntária da Pastoral da Criança da Diocese de Rio Branco. “Foram feitos 24 abrigos na capital. 53 bairros ficaram alagados. Nós fechamos o escritório e fomos pra lá! Se não fizéssemos isso, não seríamos Pastoral”, diz.
Em um primeiro momento, a ajuda da Pastoral da Criança chega em forma de orientação. A coordenação chamou os líderes que não ficaram desabrigados e passaram a visitar os abrigos da capital dando informações sobre higiene e saúde à população. “Falamos sobre o soro, a campanha do Lavar as Mãos, criamos uma conscientização”, explica Maria José. Cerca de 10 mil pessoas ficaram desabrigadas em Rio Branco. Até o dia 10 de março, segundo dados oficiais do governo estadual, apenas mil pessoas puderam voltar às suas casas.
Mas a preocupação da Pastoral da Criança local se estende a outros municípios além de Rio Branco. “Estamos sem contato com a Pastoral da Criança de Brasiléia. Apenas a Defesa Civil pode chegar lá”, relata Maria José. As notícias que chegam é que muitas pessoas estão tendo acesso à água potável apenas por meio dos kits humanitários enviados pelo governo, ou comprando.
Segundo ela, com a baixa do rio e o reestabelecimento dos canais de comunicação, a coordenação diocesana deve visitar Brasiléia e outros municípios que ficaram embaixo d'água para entender a situação. “Em Assis Brasil sabemos que comunidades atendidas pela Pastoral da Criança ficaram isoladas. Queremos ver como está a situação dessas e famílias e como podemos ajudar”, explica.
Entre as comunidades que devem ser visitadas, estão as dos ribeirinhos. “Sabemos que houve quem perdeu tudo”, conta Maria José. Muitos deles eram produtores rurais e mantinham os mercados locais com alimentos, como frutas e verduras.
São Paulo (SP)
Marlene de Antonio Zamoner, de Sertãozinho, é coordenadora da Pastoral da Criança da Paróquia Santa Cruz, e conta que durante o mês de fevereiro a roda de conversa era pra ser sobre Dengue, mas o tema acabou sendo substituído pelo uso consciente da água. Quem deu o exemplo foram as crianças. “Esse tema rendeu bons diálogos entre nós líderes, mães e, para nossa surpresa, as crianças falaram sobre a economia na hora do banho, na hora de escovar os dentes e de não brincar na água, apesar de ser gostoso”, relata. Apesar de não estar em uma região afetada diretamente pelo racionamento, Marlene afirma que uma das preocupações manifestadas pelo grupo foi o armazenamento incorreto, “pois corre-se o risco da dengue, e pior, se algum vasilhame não estiver bem tampado, alguma criança cair e se afogar, pois um segundo é o que basta”, lembrou.
As preocupações do grupo de Marlene têm sentido. Segundo a organização Criança Segura, 418 crianças com idades entre um e quatro anos foram vítimas de afogamento no ano de 2012. E em Franca, o número de casos de dengue aumentou consideravelmente em 2015, se comparado ao ano anterior: em fevereiro de 2014 havia sido 1 caso, enquanto no mesmo período deste ano esse número foi de 47. A Vigilância em Saúde atribui esse número aos reservatórios que as pessoas fazem devido à diminuição da captação dos rios que abastecem o município, o que gera uma sensação de que a água pode faltar.
Maria Paulina da Silva mora em Franca, e conta que por lá, a água também passou a fazer parte das rodas de conversa. Ela colocou o tema em pauta e ainda utilizou a Campanha da Fratenidade para fazer essa reflexão. “Convidei as mães, pais e as crianças para fazermos um exame de consciência: como está meu relacionamento com Deus? E com as pessoas? E meu relacionamento com o mundo, eu cuido da natureza? De que maneira eu respeito a vida? Cuido da água, separo o lixo? Enfim, como estou servindo e de que maneira eu posso servir no combate ao desperdício?”, relata. Segundo ela, durante a reflexão sobre o assunto os participantes se mostraram comprometidos com a preservação. “Sobre os cuidados com a utilização da água, as respostas foram todas positivas: lavam roupa só uma vez por semana, passam menos tempo no banho e desligam a torneira enquanto se ensaboam. Eles também deixam a água do banho cair no balde pra utilizar na descarga ou para limpar o chão e não lavam a louça com a torneira aberta”, conta.
Rio Grande do Sul (RS)
Em Três Cachoeiras, há cerca de 20 anos, a escassez de água era uma constante em várias comunidades do município. “Sofríamos muito com a falta de água”, diz a líder da comunidade Santo Anjo da Guarda, Maria Gorete Model. Esse passado é constantemente lembrado nas conversas com as famílias para que todos tenham cuidado na utilização da água.
Foi através da organização de várias lideranças locais que a comunidade conseguiu a perfuração de um poço artesiano que capta água para uma caixa geral, e de lá distribui para as famílias. “Temos um responsável técnico, que controla a qualidade da água, além de um zelador, que cuida da rede que abastece, instala medidores e faz leituras”, explica. Quem organiza todo o processo é a Associação de Moradores. Ou seja, são voluntários da própria comunidade os responsáveis pelo sistema, o que tem se tornado um obstáculo. “Nossa dificuldade é conseguir os voluntários para assumir um trabalho assim”, diz.
Após a instalação, outras cinco comunidades já aderiram ao sistema de captação. Hoje eles contam com um estatuto, “que estabelece normas e orientações para cada morador”. Segundo a líder, o serviço vem sendo aprimorado ao longo dos anos. “Atualmente o sistema abastece quase 400 famílias com água tratada e responsabilidade técnica”, afirma.
Foto: Pedro Devani - SECOM Acre