Normalmente, quando falamos em saúde, o que logo nos vem à mente, na verdade, são exemplos ou situações de doença. Falamos de hospital, curas, dores e sofrimentos. Parece que o ordenamento social em que vivemos, bem como os conceitos construídos em torno da palavra “saúde” nos fizeram acreditar que uma pessoa “saudável” é aquela que não tem doença ou não está doente.

 

Conectada a isso, temos ainda a associação direta de doença com terapias, remédios, farmácias e hospitais. Se perguntarmos a qualquer pessoa como tratar uma doença ou qualquer distúrbio que seja, normalmente a resposta mais comum é que devemos procurar um médico ou um hospital, tomar remédios ou nos submetermos a determinadas terapias.

O conceito de saúde presente na constituição da Organização Mundial de Saúde já nos alerta para o equívoco da associação perversa e economicista entre saúde e ausência de doença. Para a OMS, “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”. Ainda assim, há problemas na definição do conceito. Falar de “completo bem estar físico, mental e social” é um tanto exagerado e irrealista, sem mencionar a carga de classismo que isso carrega. As pessoas empobrecidas e oprimidas do mundo jamais alcançarão essa “realidade”, se é que ela seja possível. Seria a saúde de domínio somente da classe média e alta?

Com relação à reflexão bíblica não me parece tão diferente. Se formos fazer um levantamento bibliográfico de livros, livretos, cartilhas e outros materiais escritos sobre saúde, vamos encontrar uma gama de reflexões bíblicas sobre “cura, exorcismos, sofrimentos e doenças”. São temas relacionados e estruturantes do debate e da reflexão sobre saúde, especialmente em nosso contexto latino americano de empobrecimento, opressão e exclusão estruturais, bem como o eram no mundo antigo.

Precisamos nos dar conta de que a dor e o sofrimento são nossos companheiros desde sempre. Fazem parte da caminhada. Doença e saúde são realidades e temas teológicos e espirituais recorrentes na Bíblia Hebraica e Cristã. É importante termos em mente que muitas são as possíveis interpretações desses casos. E uma das coisas mais relevantes é nossa espiritualidade, ou seja, nossa maneira de agir como crentes batizadas/os quando a realidade da dor e sofrimento aparecem em nossas vidas e contextos. Como fazemos? O que falamos? Como imaginamos Deus e suas ações?

Nas páginas do Novo Testamento somos convidadas/os a prestar atenção não na doença em si, visto que muitas das vezes não há uma explicação de onde ela vem e/ou como ela se desenvolve, especialmente pensando naquele tempo, mas na ação de Deus através de Jesus. Como Jesus age em relação ao sofrimento e doenças? Como nós agimos em relação a isso? O que Jesus fala, que “discurso” teológico ele faz? E nós, o que falamos de Deus quando nos deparamos com a doença e o sofrimento?

Essas são perguntas perturbadoras, porque quando vamos para as respostas algo parece que não combina. Cremos num Deus, mas falamos Dele de forma diferente da que cremos.

Vamos olhar para o texto de João 9. Esse texto nas nossas Bíblias é chamado de relato do “cego de nascença”. Novamente, vemos os títulos em negrito das Bíblias (que não são parte dos originais e são muito ideológicos). Já começamos o texto “mal”... o título nos faz focar na doença e na interpretação comum das doenças. Isso é transmitido pela pergunta dos discípulos (que nunca entendem nada do ministério de Jesus) se o homem é cego porque ele pecou ou foram os pais dele que pecaram. Essa era (acho que ainda é para muita gente) a interpretação comum: a doença ou a “incapacidade de algo” é fruto da punição divina por algo que a pessoa fez.

Jesus faz uma outra interpretação, não focada na doença ou no pecado. Para Jesus, esse homem não sofre porque pecou. Ele não explica também porque ele sofre ou porque é cego. Isso, de certa maneira, não é relevante. O que é relevante?

Jesus aproveita o contexto de vida desse homem, a pergunta dos discípulos e os conflitos teológicos para explicar (mais uma vez) que a graça de Deus é para todas as pessoas e que ela está especialmente para quem mais precisa, como era o caso daquele homem cego. A ação de Deus não foi puní-lo, mas curá-lo. Deus está presente também na doença e no sofrimento. Deus não é o causador dele. O sofrimento faz parte da vida, é bom a gente se dar conta disso. Como Jó, o inocente sofredor, nós somos convidados a abraçar o sofrimento como parte da vida e não como castigo de Deus.

Onde está Deus quando vamos (ou estamos) em situações de sofrimento e dor, doença e limitação? Deus expressa-se através dos nossos corpos, das nossas falas e das nossas ações? Que Deus apresentamos quando vamos, falamos e agimos? A misericórdia ou o castigo?

“Deus que quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’” (I Tim. 2,4), porque Deus se revela em Jesus para a salvação de toda a humanidade e não para a condenação. Penso que, às vezes, esquecemos deste aspecto central da Verdade de Deus – Jesus, ‘tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas’ (Hebr. 1,1), quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o Seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, a evangelizar os pobres, curar os contritos de coração (Cfr. Is. 61,1; Lc. 4,18), como médico da carne e do espírito (Sto. Inácio de Antioquia aos Efésios, 7, 8), mediador entre Deus e os homens (Cf. I Tim. 2,5). A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação. Por isso, em Cristo «se realizou plenamente a nossa reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino (“Sacrossanctum Concilium 5”).

Que a misericórdia de Deus seja nosso auxílio e proteção. Convido vocês a orarem com o Salmista o salmo 130 (129): “Do fundo do meu penar: clamo a ti Senhor!”

 

Paulo Ueti

Assessor da Pastoral da Criança