Tempos de Escola
Aos 10 anos de idade Zilda Arns chegou à Curitiba-PR para morar com alguns de seus irmãos e irmãs mais velhas que aqui já estavam para continuar os seus estudos. Gabriel Arns, patriarca da família, construiu um sobrado de madeira com três quartos e várias salas de estudo para os seus filhos, localizado no bairro Água Verde, rua Ângelo Sampaio, em um terreno de três lotes. O sobrado ficava no lote do meio; em um dos lotes laterais ficava quadra de vólei e no outro a horta onde os jovens Arns cultivavam verduras, frutas, chás e criavam galinhas e coelhos.
Zilda iniciou seus estudos do Ginásio (Ensino Fundamental II) no Colégio Divina Providência, situado na Rua do Rosário, centro de Curitiba, dirigido pelas irmãs alemãs da Divina Providência. Tradicional e rígido, o colégio exigia de suas alunas extrema dedicação e asseio, inclusive com o uniforme escolar. No livro Depoimentos Brasileiros, Zilda conta como era complicado o trajeto de sua casa até o colégio em dias de chuva: “Subíamos, Zélia e eu, algumas quadras a pé até chegar à Maternidade Victor Ferreira do Amaral, na rua Iguaçu, onde pegávamos o bonde. Em dias de chuva, por causa do barro, deixávamos os sapatos e meias sujos debaixo de um arbusto e trocávamos por limpos, para não haver problemas.” (ARNS, 2003, p.30).
Foi no colégio Divina Providência que Zilda jogava e se exercitava nas partidas de vólei, sendo selecionada para o time oficial do colégio, ganhando por dois anos consecutivos o torneio estadual. No último ano do curso científico (Ensino Médio), Zilda estudava no Colégio Sagrado Coração de Jesus e por esse também foi selecionada para o time oficial de vólei, sendo campeã estadual pela terceira vez.
 
Foto de Formatura
Zilda era uma moça que possuía muito carisma e tato para com as pessoas. As primeiras amostras desta característica se deram enquanto era catequista. Amiga das irmãs vicentinas desde o tempo de catequese, Zilda foi por estas convidada a ser estagiária voluntária do recém-construído Hospital Nossa Senhora das Graças, no bairro Mercês. Na época, a jovem estudante de medicina não havia aprendido nem aplicar injeções, porém isso não foi motivo para recusar o convite. A oportunidade de aprendizagem era de inestimável importância.
Iniciado o estágio, Zilda foi a primeira mulher a estagiar no Hospital Nossa Senhora das Graças, sendo considerada uma ótima auxiliar. As irmãs vicentinas ofereceram à ela um apartamento para morar e alimentação em troca da colaboração no hospital. Voltava para casa somente nos finais de semana, sendo seu plantão nas sextas-feiras a noite. Zilda se comovia com os pacientes mais sofredores. Esperava os médicos e os residentes se afastarem para chegar perto da pessoa e afagá-la com suas canções, apertos de mãos e carinhos na cabeça. Muitos eram os pacientes que se alegravam ao ver Zilda.
Seu trabalho era reconhecido por todos e as irmãs e enfermeiras sempre incentivaram Tipsi a continuar sua trajetória na medicina e no hospital. Um dia a superiora, Irmã Íris, pediu à Zilda que voltasse para casa. A jovem não entendeu, não viu razão, motivos, um por quê de estar sendo convidada a se retirar do Hospital Nossa Senhora das Graças. O choque foi terrível. Chorou durante uma semana inteira. Na tentativa de reanimá-la, frei Crisóstomo, seu irmão mais velho, a convidou para trabalhar no Colégio Bom Jesus, o qual ele dirigia. Mas a vocação de Zilda a impediu.
Passados alguns dias, se lembrou do Hospital de Crianças César Pernetta e foi conversar com as irmãs do Sagrado Coração de Jesus, a fim de ver qual seria a probabilidade dela começar a estagiar ali. Com a autorização do dr. Raul Carneiro Filho, Zilda começou a estagiar cuidando das crianças no hospital.
Quarenta e dois anos se passaram e experiências na Secretária de Estado da Saúde e Bem Estar Social do Paraná e seu protagonismo na Pastoral da Criança fizeram da jovem estagiária Zilda se transformar na Dra. Zilda Arns. Estava ela participando de um Encontro Reginal da Pastoral da Criança, realizado na casa das irmãs vicentinas, quando foi chamada a conhecer a Casa das Irmãs Idosas. Chegando lá, uma grande surpresa a esperava: Irmã Íris aos 92 anos de idade. A ex-superiora do Hospital Nossa Senhora das Graças não podia deixar Zilda ir embora sem pedir perdão e explicar o motivo que a fez demitir a jovem estudante de medicina naquela época: Zilda era muito bonita e carinhosa para com todos, o medo de ver aquela promissora médica se perder em seu caminho por conta do hospital, fez Irmã Íris agir do jeito que agiu. Agora, Zilda sabia e compreendia os motivos de Irmã Íris.
 
Diploma
O diploma de graduação em Medicina de Dra. Zilda está carregado de histórias. Uma delas é sobre a cirurgia de dez cãezinhos. No quarto ano do curso foi chegada a hora da temível disciplina de cirurgia. Como avaliação, o professor pediu que cada aluno encontrasse cães machucados para assim operá-los e acompanhá-los em sua recuperação.
Durante o período de faculdade de Zilda, a matriarca da família, Mãe Helena, estava residindo com seus filhos em Curitiba. Foi com o auxílio dela que Zilda cuidou dos animais, que eram recolhidos das ruas por sua mãe. Dona Helena sempre dizia: “Em casa que entra sol e boa alimentação, não entra médico”; seguindo os conselhos da mãe, Zilda criou sua ideologia profissional, começando a aplicar em seus novos pacientes, hidratando-os, dando uma boa alimentação, higienizando suas feridas, os fazendo descansar, para estarem bem no momento da cirurgia. Passada a avaliação no laboratório, cada aluno estava agora incumbido de auxiliar no processo de recuperação de seus pacientes. Zilda manteve seus cães hidratados, alimentados corretamente e higienizados, principalmente no local da cirurgia, trocando gazes e limpando os ferimentos. Resultado: os cães de Zilda se recuperaram rapidamente e nem lembravam mais àqueles animais que ela havia apresentado no início do processo avaliativo. O professor chegou a persuadi-la a entrar para o meio dos cirurgiões, porém Zilda negou o convite: “[...] melhor é cuidar para que ninguém precise ser operado. A vocação de sanitarista era a que eu tinha nas veias.”
Dra. Zilda Arns Neumann cursou a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O diploma da graduação – com a data de 18 de dezembro de 1959, referente à colação de grau realizada no dia anterior – é uma das peças que ajudará a contar sua história, no memorial que está sendo construído no Museu da Vida.
Passar no vestibular de medicina exigia esforço nos estudos; eram 960 candidatos para 120 vagas. Já não havia tempo para ser catequista da paróquia e visitar as famílias da favela, o que me enchia a alma de alegria, nem de jogar vôlei, a não ser aos sábados. Estudava das 19 às 23 horas, além de ir ao colégio pela manhã e ao cursinho pré-vestibular à tarde. Estava liberada dos afazeres de casa para estudar. Entre os aprovados no vestibular, éramos 6 mulheres e 114 homens. Meu irmão Felippe perguntou-me se eu queria que ele fosse ver o resultado; então combinamos que eu teria de lavar as paredes da cozinha se tivesse passado; ao meio-dia, ele voltou, parou na minha frente e disse: 'Pegue o balde e o pano e comece a lavar as paredes'. Era o sinal do resultado. Foi uma festa.
Sentia-me constrangida no primeiro ano de Medicina no meio de tantos homens. Além disso, o curso não era exatamente o que eu esperava. Só pude encontrar felicidade ao ajudar os pacientes no hospital; não me sentia bem lidando com cadáveres, que me faziam imaginar onde estaria a alma deles; rezava por todos. Papai me dizia que se eu estivesse arrependida poderia mudar de curso, fazer outro vestibular para ser professora, mas as dificuldades foram sendo superadas, e eu, acostumando-me com a vida real, oferecia os sacrifícios a Deus, pedindo-lhe que me abençoasse na minha profissão” (Depoimento - Zilda Arns Neumann: ela criou uma rede de solidariedade que salva centenas de milhares de crianças brasileiras – Belo Horizonte, Editora Leitura, 2003).
 
Lembrança de Formatura
Foi durante o período escolar, aos 16 anos de idade, que a pequena Tipsi escolheu sua profissão: ser médica missionária. Para isso se tornar realidade, Zilda ia para o colégio de manhã, fazia curso pré-vestibular a tarde, e das 19h às 23h estudava em casa sozinha.
A disputa pelas vagas no curso Medicina da Universidade Federal do Paraná era concorrida: 960 candidatos para 120 vagas. Entrem os aprovados estavam 114 homens e 6 mulheres, entre elas Zilda Arns. A vitória do vestibular foi uma festa para a família, era o sonho e a carreira de Tipsi que começara.
O primeiro ano de graduação causou à Zilda certos desconfortos. Estudar em meio a tantos homens e observar tão de perto os cadáveres das aulas de anatomia, fez com que Zilda compreendesse que a faculdade era diferente do que ela imaginava ser. Seu pai Gabriel chegou a questioná-la se estava arrependida e se o caso fosse esse, ele o apoiaria em sua próxima escolha. Porém, Zilda sabia o que queria e aos poucos foi superando cada dificuldade que se apresentava em seu caminho até começar a estagiar.

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